O cenário dramático de uma comunidade fora do mapa e isolada pela estiagem.
CAAPIRANGA – O povoado de Dominguinho não figura nos mapas do Amazonas. Mas, para quem conhece bem o município de Caapiranga, não tem como errar: as 26 casas se aglomeram à margem do Lago Grande do Manacapuru, que deságua no rio de mesmo nome, que por sua vez desemboca no Solimões.
Hoje em dia, no entanto, para encontrar Dominguinho, só mesmo checando as coordenadas. Na vida real, a mancha azul do mapa deu lugar a uma enorme cratera tingida do verde da savana que cresce no leito do lago e do branco da areia. Do grande lago, nem sinal.
A comunidade, fundada em 1981 por uma matriarca, seus quatro filhos, genro, noras e netos, se reúne para assistir à chegada da reportagem do Estado: é a primeira vez que um helicóptero pousa em Dominguinho em 20 anos. Por volta de 1985, lembram os mais velhos, um helicóptero da Petrobrás fez uma breve aterrissagem no povoado. “No rádio e na TV, nunca falam da gente”, diz João Salvador de Carvalho, 55 anos, um dos pioneiros de Dominguinho. “Ninguém tinha vindo aqui.”
Acima de Dominguinho, subindo o Rio Manacapuru, há outras 11 comunidades também isoladas, enumeram os moradores: Cachoeira, Taboca, Jauari, Cambichá, Vila União, Manguari, Pupunheira, Roça, Maranhão, São Pedro e Aracaí. Cada uma com 30 a 40 moradores. Dominguinho é a maior da região, com 143. É aqui, nessas comunidades do município de Caapiranga, a 200 quilômetros em linha reta a oeste de Manaus, que está o verdadeiro isolamento causado pela seca.
As comunidades vivem uma contradição amazônica: estão ilhadas por falta de água. Na Amazônia, os rios significam tudo: de alimento a transporte – que por sua vez traz o resto. Dos 62 municípios do Estado do Amazonas, apenas 6 sedes estão interligadas por rodovias. Não há pistas de pouso na maioria desses municípios. O governo do Estado e a polícia não têm helicópteros; só as Forças Armadas. E há apenas dois helicópteros particulares no Amazonas, de uma empresa de táxi aéreo.
Sob o sol a pino do meio-dia, Luís Ferreira, de 63 anos, vem caminhando na areia com um arpão e um saco de nylon. Ele saiu às 5h30 de casa e caminhou meia hora até a beira d’água, onde sua canoa está enterrada na lama. Depois de uma manhã inteira, conseguiu pegar 15 peixes, entre tucunarés, aruanãs e até piranhas: “No caso de aperto, a gente come.”
Luís, também um dos fundadores do povoado – 29 parentes que vieram numa balsa fretada de Coari, no Rio Solimões -, diz que o rio só baixou a esse nível em 1997, o ano do fenômeno El Niño. “Como a água ainda está arriando, calculo que este ano vai ser pior”, diz o pescador, olhando para o leito do lago convertido em estrada de areia: “Está quase que nem no sertão, onde o camarada anda para ir buscar água.”
Faz um mês e meio que não vêm os barcos de passageiros e mercadorias. Alguns estão encalhados por perto. Além de não receberem alimentos e remédios, os moradores também não podem vender sua produção de banana e farinha de mandioca. “Nossas terras são muito boas”, diz Antônio Santana Vales, de 60 anos. “Tem produção, mas não tem para quem vender.”
Os moradores da comunidade, que vieram trabalhar para um seringueiro que já foi embora, escolhem seus pedaços de terra para plantar no fundo do povoado, onde se descortina a Floresta Amazônica.
Na única mercearia, as últimas mercadorias chegaram dia 28. “O que tinha de vir já veio”, avisa o dono, Antônio Ferreira da Silva. “Quando acabar, enquanto não subir o rio, vai ficar sem.”
Outra preocupação é o óleo diesel, que move as bombas d’água e os geradores de eletricidade. Com os rios e lagos convertidos em poças lamacentas, resta a água potável dos poços artesianos, puxada por bombas. Se o combustível acaba, a única água por perto é a dos “cacimbões”, pequenos açudes de água parada e infectada. Na sede do município, o diesel só dava para até ontem. As aulas foram suspensas no dia 21: dos 139 alunos da escola em Dominguinho, 25 vêm num bote da prefeitura, de outras comunidades.
A última moradora que viajou de Dominguinho para a sede do município, a 49 quilômetros em linha reta, foi a professora Creusa Ferreira da Silva, de 27 anos, que foi receber o seu salário em Caapiranga, no dia 1.°. Creusa caminhou meia hora sobre o leito seco do lago, até uma canoa com um pequeno motor de popa, chamada aqui de rabeta, na margem do Rio Manacapuru. De canoa até um barco maior, onde a água estava mais profunda, foram duas horas. O barco levou 11 horas até Membeca, um porto ligado a Caapiranga por uma estrada. Total: 13 horas e meia, num trajeto que normalmente leva 1 hora de barco. De Membeca, é mais meia hora de ônibus. Mas isso foi há duas semanas. De lá para cá, a água seguiu baixando. Ninguém sabe ao certo como seria agora a travessia.
Na casa do agente de saúde Ubiratan Costa, de 45 anos, o que resta de cloroquina e primaquina, as duas drogas usadas contra a malária, dá para cinco pessoas. Pela experiência de Ubiratan, isso significa cerca de duas semanas. Praticamente todos os moradores pegaram malária este ano.
Quanto mais forte a seca, mais intenso o trabalho do mosquito. No momento, há três pessoas com malária, mas todos já em recuperação. O soro, usado para aplacar a malária, diarréia e vômito, acabou na segunda-feira.
“Se a gente topasse num outro canto e contasse a situação, vocês não iam acreditar”, diz Edith, de 60 anos, mulher de João. “Ajuda só chegaria aqui se viesse igual vocês vieram: direto. Se for para a sede do município, não chega até aqui não.”