Marrocos equilibra-se entre Islã e monarquia

Lourival Sant’Anna
ENVIADO ESPECIAL / RABAT

De início, os manifestantes da Primavera Árabe não pediam a deposição de nenhum dos chefes de Estado, mas a realização de reformas democráticas – que, no caso da Líbia e da Síria, tinham sido prometidas. O que fez os movimentos crescerem e se tornarem uma luta sem volta pela queda dos regimes foi a repressão violenta e discursos arrogantes – marcados para sempre na lembrança de todos – dos chefes de Estado, prometendo não ceder e anunciando mais repressão. O rei Mohamed 6.° seguiu outro caminho, criando o que ficaria conhecido como “a exceção marroquina”.

No dia 9 de março de 2011, duas semanas depois do início dos protestos, que chegaram a reunir 100 mil pessoas, Mohamed anunciou uma reforma constitucional, que introduziria a separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e a garantia de o líder do partido vencedor das eleições parlamentares ser nomeado primeiro-ministro pelo rei, que antes podia nomear quem quisesse, até mesmo de fora do Parlamento. Em um aspecto importante, os marroquinos não foram exceção: deram maioria a um grupo islâmico moderado, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD), nas eleições de novembro de 2011. Seu líder, Abdelilah Benkirane, tornou-se primeiro-ministro.

As opiniões se dividem quanto ao grau de liberdade e democracia atingido pelas reformas. Ou talvez sobre se um país como o Marrocos poderia ir mais longe do que foi até aqui. Muitas pessoas que acham que a monarquia continua concentrando poder excessivo, e que nada mudou, temem a ascensão dos fundamentalistas islâmicos, olhando para a vitória do PJD e para o que está acontecendo nos outros países da Primavera Árabe. “Estamos entre a peste e a cólera”, define uma pequena empresária de 35 anos. “Recuamos da esperança que tínhamos.”

Uma estudante de computação de 22 anos, que participou das primeiras manifestações, em 2011, conta que se distanciou do movimento quando percebeu a participação crescente dos militantes do partido clandestino Justiça e Caridade, da corrente salafista (radicais islâmicos). “Eu prefiro o rei”, disse ela. “Não quero a situação da Tunísia e do Egito”, continuou, referindo-se à vitória do Ennahda tunisiano e da Irmandade Muçulmana egípcia, que acabou apeada do poder em julho pelos militares, em meio a manifestações de secularistas. “Sou ateia”, explicou a estudante – uma confissão que não se pode fazer em público no Marrocos.

Diante da reforma constitucional e da “ameaça islâmica”, as manifestações pró-democracia arrefeceram, reunindo no máximo alguns milhares de pessoas, em média uma vez por mês. Temas pontuais também mobilizam alguns protestos, como a concessão de indulto real a um pedófilo espanhol – que o rei disse depois ter assinado por engano. O repórter do Estado presenciou um protesto de algumas dezenas de pessoas com ensino superior, que se diziam desempregadas e exigiam empregos públicos. O protesto pacífico, ao lado do Parlamento, durou exatos 13 segundos, até que a polícia de choque dispersou os manifestantes a golpes de cassetete.

De acordo com Driss El Yazami, presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, ligado à monarquia, em 2011 e 2012 houve, por ano, 22 mil manifestações, das quais 99% não sofreram intervenção da polícia. “A lei marroquina copia a lei francesa”, alegou Yazami, que foi secretário-geral da Federação Internacional das Ligas dos Direitos Humanos, em Paris. “Os manifestantes têm de declarar a manifestação 48 horas antes. As autoridades têm o direito de proibir. Os manifestantes têm o direito de recorrer ao tribunal administrativo contra essa proibição.” 

O problema, justifica ele, é que os manifestantes não pedem a autorização, e “praticamente 100% das manifestações no Marrocos são ilegais”. “Para mim é um aprendizado de democracia e civismo”, conclui.

“Houve avanços, mas frágeis e parciais”, avalia Abdelkhalek Benzekri, vice-presidente da Associação Marroquina dos Direitos Humanos. Ele observa que o rei preside as reuniões do Conselho de Ministros, aos quais dá as “orientações gerais”, e o Conselho da Magistratura, que nomeia os juízes: controla o número de candidatos que os partidos podem lançar: é comandante supremo das Forças Armadas e tem ainda o título de “comandante dos fiéis”, ou seja, da religião. “É o rei que domina praticamente tudo”, constata Benzekri.

A liberdade de imprensa é limitada por três “linhas vermelhas”, que não podem ser cruzadas. São temas-tabu que correspondem a três áreas ligadas diretamente ao rei: a própria monarquia, o Islã e a integridade territorial, que está relacionada com o movimento separatista do Saara Ocidental, no sul do país, apoiado pela vizinha Argélia.

Benzekri e outros analistas acusam o regime de prender seus detratores lançando mão de pretextos. Esse seria o caso de Osama El Khliji, líder das manifestações de 2011, preso em flagrante em meados deste ano quando fazia sexo com outro homem em um parque, e que continua detido; e do jornalista Ali Anouzla, um dos maiores críticos da monarquia, que ficou na cadeia durante um mês, antes de ser solto no dia 25, por ter publicado em seu site um vídeo da Al-Qaeda. Yazami responde que ambos violaram leis marroquinas, e que há muitos críticos do regime em liberdade.

“O Marrocos tem o seu próprio modelo”, justifica um conselheiro do rei, que falou ao Estado sob a condição de não ser identificado. “Nunca fomos colônia. Não temos por que imitar os outros.” 

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