Futuro de alianças políticas é incerto para 2002

Debilidade dos laços que unem os partidos tira a consistência dos projetos em gestação

 

Concluído o primeiro ano do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, cujo governo se sustenta sobre coalizão parlamentar, a consistência e o futuro das alianças parecem incertos. Para daqui a três anos, não há nada que indique mudanças fundamentais nos atuais alinhamentos nem que lhes acrescente solidez. Assim, justificam-se as incertezas quanto aos projetos de poder em gestação no País.

Um sólido projeto de poder contém duas premissas: vencer a eleição e governar. Fernando Collor de Mello ganhou a eleição, mas não governou, porque lhe faltava o item básico da governabilidade no presidencialismo brasileiro: maioria no Congresso. No fragmentado sistema partidário nacional, com cinco ou seis grandes legendas, a sustentabilidade de um governo requer a formação de aliança.

Fernando Henrique Cardoso venceu a eleição de 1994, governou e elegeu-se para um segundo mandato. E agora? A aliança que sustentou (e sustenta) o presidente está frágil? “Críticas todos enfrentam; mas gostaria de saber quem tem a capacidade, hoje, de reproduzir a coalizão que conseguimos?” A pergunta traduz mais do que a admiração de um colaborador muito chegado ao presidente. É o reconhecimento por parte dos que comungam o ideário de Fernando Henrique – muitos partilharam com ele a experiência do exílio – do êxito desse projeto de poder.

Como na leitura de Nicolau Maquiavel, para governar, o príncipe (líder) deve contar com a virtude e a fortuna. A fortuna, para o presidente, teria sido a concepção da estabilidade como bem público a ser perseguido e do instrumento idealizado para sua realização, o Plano Real; a virtude, a habilidade do sociólogo em cooptar as lideranças políticas para o projeto.

Na leitura desse mesmo colaborador, nesse contexto, pesam pouco os índices negativos das pesquisas de popularidade (que já começam a se inverter, embora de forma lenta) e as críticas sobre o desempenho da economia brasileira – nos âmbitos nacional e internacional – ou as parcas conquistas no campo social. Ao presidente e sua equipe, caberia o mérito de terem contribuído para o amadurecimento do capitalismo local: “Somos cobrados por tudo; poucos enxergam, entretanto, que essa foi a aliança possível para forçar o nascimento de novas estruturas econômicas e polïticas.”

Resumindo, segundo esse ponto de vista, Fernando Henrique liderou o grupo hegemônico na política capaz de viabilizar esse “mundo novo” ou o nascimento de uma “nova sociedade”, como disse recentemente o próprio presidente.

Uma análise mais acurada da realidade expõe o exagero desse otimismo. A rigor, nenhum dos três projetos para a eleição presidencial de 2002, que se delineiam hoje no País, parece resolvido quanto à aliança que o sustentará. São eles: o que venha a reivindicar a continuidade do atual governo, o do PT e seus aliados de esquerda e o de Ciro Gomes (PPS-CE). O de Ciro Gomes ainda nem tomou forma, segundo esse aspecto.

O PT sabe que a frente de esquerda com a qual concorreu às eleições presidenciais de 1989, de 1994 e de 1998 não tem força para governar o País. Além disso, o partido suspeita que ela não seja suficiente sequer para vencer uma eleição presidencial. “Contamos com desprendimentos do PMDB, que gostaríamos que fossem maiores”, diz Marco Aurélio Garcia, um dos 21 membros da Executiva Nacional do PT.

Ele quer dizer que o PMDB é o único manancial a garantir o suprimento da frente, com seus dissidentes, já que não há perspectiva de cooptar aliados nas fileiras do PFL e do PSDB.

A atual aliança com os stalinistas do PC do B, com o PSB de Miguel Arraes e com o PDT de Leonel Brizola “provoca urticárias” no partido, no dizer de um dirigente nacional. Mais dramático é que esse arranjo, incômodo e insuficiente, não está sequer garantido: “A derrota é má conselheira e a última foi muito desgastante”, reconhece esse dirigente.

A aliança que governa o Brasil tem-se mostrado numericamente suficiente, mas também sofre de incômodos e de incertezas. A crise de popularidade do presidente que se seguiu à desvalorização do real, em janeiro – mesmo que a autocrítica seja difícil –, expôs a fragilidade política da aliança.

Protagonistas do PFL e do PMDB não contiveram nem a inquietude com o preço político do ajuste nem a ansiedade em antecipar o debate sucessório, quando o presidente acabava de tomar posse.

Mas a debilidade dos laços que unem os dois partidos entre si e ao PSDB é mais profunda. “O bloco ainda não está consolidado”, admitiu ao Estado o secretário-geral da Presidência, Aloysio Nunes Ferreira, coordenador político do governo e um dos líderes do PSDB. “Falta-lhe o elemento ideológico, que é decisivo, e explicitar o projeto.”

O projeto a ser explicitado e que vem sendo executado ao longo dos últimos cinco anos, na visão do PSDB, é o da conversão do Estado “demiurgo do desenvolvimento”, paternalista e empreendedor, concebido por Getúlio Vargas, em Estado moderno, preparado para tarefas específicas, como a regulação e a fiscalização, que o mundo globalizado parece reservar-lhe.

Parcelas expressivas do PFL e do PMDB, no entanto, têm dificuldades de compreender e/ou ajustar-se a esse projeto, mesmo tendo sido instrumentais na sua consecução. Como lembra ainda um observador tucano, os dirigentes do PFL eram preponderantemente associados, num passado não muito distante, às políticas clientelistas propiciadas por órgãos como o Funrural e a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Estavam, assim, mais para Getúlio Vargas do que para Fernando Henrique.

Como a sigla indica, o PFL é uma frente, que abriga desde liberais até os corporativistas das bancadas dos ruralistas, dos usineiros, etc. Em todo caso, o governo também é assim: “Há gente que confia demais na mão invísivel do mercado, mas há também aqueles que ainda confiam demais na mão visível do Estado”, sentencia um assessor do presidente.

Com o PMDB, a inconsistência parece bem mais drástica. “O PMDB é como uma mulher que você não conhece bem, não sabe se é o seu tipo, mas a convida para sair, sempre temendo que ela vá palitar os dentes depois do jantar”, compara um dirigente tucano.

A imagem é por ele usada para explicar que a maioria da cúpula do PSDB quer ver o PMDB de fora da aliança – por temer sua inconveniência –, mas não defende essa alternativa porque sabe que isso significaria deixar o governo mais dependente ainda do PFL.

Esse mesmo tucano raciocina que, do ângulo operacional, o PFL costuma ajudar na hora do vamos ver – graças ao poder do senador Antonio Carlos Magalhães. O problema é que ACM é uma personalidade e tem muita luz própria, o que acabaria por tornar o contato “problemático”. Como o projeto de consolidação do PFL no Centro-Sul não se completou e a morte de Luís Eduardo Magalhães afetou seus planos para 2002, o partido está aberto à negociação. O PSDB acredita que o governador do Ceará, Tasso Jereissati, seria um nome aceitável para ACM.

O PFL mostra-se mais convencido da aliança do que o PMDB. “Chega a ser uma anomalia um partido desse tamanho, com enorme bancada, atravessar três eleições sem emplacar um candidato”, observa um membro da coalizão. Entre os blocos, as perspectivas de realinhamentos parecem hoje praticamente nulas, a não ser pela volatilidade e heterogeneidade do PMDB.

O presidente e seus colaboradores mais próximos vêem o PT como um partido de esquerda à espera do aggiornamento, ou seja, da reciclagem de suas teses diante das constatações catalisadas pela queda do Muro de Berlim, há dez anos.

A cúpula do PT encara o presidente como um político cuja ambição de poder, aliada a genuínas convicções liberais recém-adquiridas, selou uma opção consciente e definitiva por um projeto de poder em que não há lugar para a esquerda.

A ida de Luiz Inácio da Silva ao Planalto, há um ano, só serviu para sedimentar essa visão. Até hoje, Lula fala da traumática experiência de “se queimar” perante o partido para se reunir com o presidente sem pauta prévia e concluir que ele não queria mais que ser ouvido.

Conversas com ideólogos do PSDB e do PT levam a concluir que a distância entre os projetos de poder dos dois partidos não é apenas resultante da polarização política, depois de confrontos diretos em duas eleições presidenciais consecutivas. Há um profundo fosso programático entre os dois grandes partidos brasileiros mais comprometidos com seus programas.

Os petistas acreditam que as reformas conduzidas pelo governo demonstram obsessão com o aspecto fiscal e traem completa despreocupação com os problemas sociais. Os tucanos, mesmo julgando que o resultado das reformas ficou aquém do imaginado, acham que deram passos na direção certa e isso era o que se poderia fazer, na realidade do Congresso.

“Se tivéssemos uma esquerda um pouco mais progressista em relação à saúde, à previdência e à educação, ela seria mais aproveitável”, resigna-se um assessor do presidente. “Essas reformas não tiveram como prioridade os problemas sociais”, rebate um assessor de Lula.

Como diz um cientista político, há dois tipos de analistas: os que julgam a situação pelo lado da vontade política e os que levam em conta a correlação de forças. Aparentemente, no Brasil polarizado por dois blocos (o dos a favor e o dos contra o governo), as duas variáveis não são tão distintas.


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