Acabam de receber um adolescente de Karachi, de mochila nas costas, que nem fala pashto, a língua dos talebans, mas urdu. Veio voluntariar-se para a jihad, a guerra santa contra o provável invasor americano. Uma visita inesperada surge no terreno poeirento protegido por um muro de alvenaria. Um comerciante da região, conhecido das autoridades talebans, vem trazendo do Paquistão um jornalista brasileiro e seu intérprete pashto. Pede uma entrevista. A situação é inusitada. O comando supremo do Taleban em Kandahar, 105 quilômetros ao norte, emitira uma fatwa (decreto religioso) ordenando aos afegãos matarem qualquer estrangeiro que encontrarem em seu território, depois de haver prendido uma jornalista inglesa.
Colhidos pela surpresa e em deferência ao importador e exportador pashto, os maulanas aceitam falar com o forasteiro. Depois das apresentações e saudações, todos se sentam novamente e começa a entrevista.
Estado — Em que mudou a situação de vocês depois do dia 11 de setembro?
Ruzi Khan Akhond (comandante militar do sul) — Estamos em estado de alerta, mas até agora estamos muito tranqüilos. A vida continua. As pessoas estão trabalhando normalmente e não temos nenhum problema.
Estado — Houve uma mobilização para defender o país em caso de ataque?
Razak Sab (administrador de Spin Buldak) — O governo proibiu todas as famílias de deixarem o Afeganistão. A população tem de ficar aqui para proteger o país dos inimigos. Estamos chamando de volta todos os afegãos que deixaram o país.
Estado — Como vocês tratam as pessoas que não concordam em obedecer estritamente as leis islâmicas por vocês impostas?
Ruzi Khan Akhond — Todos os afegãos gostam das regras do Taleban, porque somos todos muçulmanos e devemos seguir as leis islâmicas. Todos estão felizes e nos apóiam.
Estado — Vocês sentem falta de economistas, agrônomos, advogados e outros especialistas para tomar cuidar de questões específicas, ou as leis islâmicas dão conta de tudo?
Zaher Sab (comandante supremo da região) — Atualmente estamos engajados numa guerra contra a Aliança do Norte e outros inimigos. Não temos condições de cuidar da economia e da agricultura. Quando nos livrarmos dos inimigos, todos os profissionais afegãos vão querer voltar para cuidar dessas coisas, porque amam seu país.
Estado — Muitos afegãos instruídos que saíram do país não gostam do Taleban, por causa do rigor com que impôs as leis islâmicas. Como vocês os atrairão de volta?
Zaher Sab — Por muitos e muitos anos não houve regime islâmico no Afeganistão. As pessoas não estavam vivendo de acordo com o Islã. Quando o Taleban introduziu essas leis, as pessoas não aceitaram, porque era uma situação nova para eles. Por isso, foram embora. Mas gradualmente as pessoas estão voltando, porque estão vendo que os habitantes daqui estão felizes. Os técnicos, as pessoas instruídas, voltarão.
Estado — Se todos estão contentes com o Taleban, por que vocês não realizam eleições? Vocês acreditam em democracia?
Ruzi Khan Akhond — Temos muitas tribos no Afeganistão, cada uma representada por um mulá (sacerdote muçulmano). Quando quisermos fazer eleição, faremos de acordo com nossa tradição: a Shura (conselho de chefes tribais) se reunirá e escolherá o novo governante do Afeganistão.
Akhond, libertado há dois anos depois de ficar três como prisioneiro da Aliança do Norte, quer encerrar a entrevista. Diz a Zaher Sab que deveriam mandar embora o jornalista. Zaher discorda. “Se você não quiser responder mais as perguntas, não responda. Mas é melhor que ele leve uma boa impressão daqui.” O clima se torna tenso e o jornalista pede para fazer apenas mais uma pergunta. Zaher Sab consente.
Estado — O Ocidente vê o Afeganistão como um ninho de terroristas, porque todo grupo islâmico fundamentalista que quer derrubar seu governo é acolhido aqui. Como vocês respondem a essa acusação?
Zaher Sab — Não permitimos que ninguém cometa atos de terrorismo a partir daqui. Há um grande mal-entendido no Ocidente. Osama bin Laden foi trazido aqui pelos americanos, não por nós, e desde então está aqui. Osama não é um terrorista. É um mujahed (combatente da liberdade).
O jornalista faz um último pedido: tirar fotos. “O Taleban proíbe fazer fotografias e filmagens, porque usar imagens é contra a lei islâmica”, responde Akhond. Parece não haver mais como continuar, mas o maulana e mujahed Gul Agha entra providencialmente na cabana e é apresentado ao jornalista. O chá de erva doce é servido em xícaras sem asas, ao lado de balinhas para adoçar a boca. A atmosfera se desanuvia e o jornalista aproveita a curiosidade do recém-chegado para continuar a entrevista, em tom de conversa.
Gul Agha — Um jornalista, acho que da Austrália, veio aqui há cinco anos e ficou muito impressionado com o Taleban. Converteu-se ao islamismo e se engajou na guerra santa (contra facções rivais). Morreu e se tornou um shaheed (mártir), e foi direto para o paraíso.
Estado — Qual a diferença entre guerra santa e terrorismo?
Gul Agha — O Islã condena o terrorismo. A jihad é uma luta para instalar o governo islâmico, para salvar a vida de nosso povo, para proteger o país e para acabar com o terrorismo em nossa terra. Você está vendo a situação aqui. Somos pobres, mas somos felizes, enquanto que no Ocidente as pessoas não estão satisfeitas e muitos cometem suicídio. Uma vez um ocidental veio a um bar aqui e disse ao dono que não era feliz, que andava tenso e não conseguia dormir. Então o dono do bar o convidou para ir à mesquita. Depois de ouvir a pregação, ele dormiu durante dois dias. E se converteu ao Islã. É uma religião muito pacífica, que faz as pessoas felizes.
Os talebans encerram a entrevista com uma oração, na qual pedem duas coisas: que vençam a guerra e que o jornalista brasileiro se converta ao islamismo.
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