BAGDÁ – Passava das quatro da tarde de domingo. Não tínhamos comido nada nem dormido na noite anterior. Percorremos 551 quilômetros entre a fronteira da Jordânia e Iraque até Bagdá.
Parando a cada vez que um motorista vindo na outra pista fazia um sinal, para contar que havia visto ou sido vítima de assaltantes com fuzis Kalashnikov, esperando até que outro dissesse que a estrada já estava livre. Depois de 16 horas, chegamos exaustos, empoeirados e famintos.
O destino de todos os jornalistas era o Hotel Palestina. Os motoristas das 12 caminhonetes de cabine dupla apostavam corrida entre si no comboio, acossados pelos jornalistas, que queriam chegar primeiro para arranjar um quarto no hotel. Inútil: o Palestina já estava com o dobro de sua capacidade. O Sheraton estava lotado, assim como os hotéis pequenos em redor do Palestina.
Começamos a andar pela Avenida Abul Nouas, à beira do Rio Tigre, enquanto nosso cético motorista nos seguia num carro, levando as bagagens. Quatro quarteirões adiante, apareceu o hotel do qual tinham nos falado, sem saber se estava funcionando ou não. Continuamos na dúvida, enquanto olhávamos de fora para aquilo, com o pomposo nome de Al-Safir (O Embaixador). Janelas estilhaçadas, a frente coberta pela poeira dos escombros dos bombardeios, nenhum carro na frente, as luzes apagadas.
Estava funcionando? Nem os funcionários sabiam responder. Um disse que sim, enquanto o outro tentava nos dissuadir de ficar ali. “Não temos eletricidade nem água. Se vocês usarem o banheiro, ele vai ficar sujo.” Olhamos para o lado de fora, a tarde caía sobre o que restou de Bagdá. Não havia escolha. “Inshallah (se Deus quiser), amanhã o gerador vai funcionar”, encorajou o funcionário otimista.
A partir daquele momento, o Al-Safir foi declarado reaberto. Guardamos nossas coisas numa sala e fomos andar pela cidade, enquanto os funcionários subiam as escadas com panos e baldes de água do Rio Tigre, para tentar desbastar um pouco do pó que cobria o chão. Quando subi para o meu quarto, a camareira ainda estava ajoelhada, lutando contra o pó. “Isso já é um milagre. Pode deixar assim”, disse a ela, causando-lhe um misto de orgulho e constrangimento.
A escuridão chegou, trazendo os disparos de Kalashnikov e a resposta metódica dos tanques americanos. Ali, o gerente, sentou-se na recepção, a chave do cadeado da grade da entrada numa mão, o fuzil na outra.
Na noite de segunda-feira, a promessa foi cumprida: a energia – e com ela a água encanada – voltou. Pelo menos, das 9 horas à meia-noite. “Está contente agora, Sant’Anna?”, perguntou Ali, com um sorriso triunfante. Mais um dia lavando e esfregando, e o Al-Safir ficou irreconhecível. Não fosse pelo elevador parado, pelos salões e andares superiores, ainda dominados pelo pó, pelas janelas destruídas e pela falta de energia de dia, quase pareceria um hotel normal. Para quem se hospedou no domingo, hoje nenhum hotel parece superá-lo em conforto e luxo.
Um dia, a história do Al-Safir ainda pode se repetir na escala de Bagdá. Olhando para a capital arruinada, hoje, isso pode parecer impossível. Não para quem chegou no domingo e testemunhou do que essa gente é capaz, no microcosmo do Al-Safir.
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