No Comício da Central do Brasil, foto de Getúlio Vargas indica sua influência
Choque entre 2 visões de Brasil
O conflito, que refletia a divisão do mundo entre capitalismo e comunismo, fermentava desde o início da década, ganhou as ruas e teve seu desfecho com a intervenção militar
Lourival Sant’Anna
É quase sempre arbitrária e discutível a definição do momento desencadeador de um acontecimento histórico. A tentação é grande de retroceder um pouco mais na busca do ponto de inflexão, do fato definidor. Com o golpe de 64 não é diferente. Mas talvez não seja possível entender aquele ambiente sem recuar pelo menos até a ascensão de Getúlio Vargas em 1930 e a implantação de seu Estado Novo (1937-45). Naquele período, o ditador populista e autoritário encarnou a figura paterna com que tanto sonham, do Descobrimento até hoje, gerações sucessivas de brasileiros, que se sentem desamparados sem um provedor, seja um senhor de escravos, imperador, marechal, coronel ou governante, ao mesmo tempo implacável, benevolente, poderoso.
Getúlio saiu e voltou. Retomado o ciclo dos governos democráticos, foi antecedido e sucedido por presidentes mais ou menos liberais e carismáticos. Mas seu suicídio em 1954 e sua carta-testamento selaram de forma quase mágica o papel do pai austero e protetor. Ao eleger Juscelino Kubitschek em 1955, os brasileiros buscaram uma resposta mais racional para os seus anseios. JK governava com “planos de meta”, que resultaram na industrialização e na interiorização do País, por meio de rodovias e da construção de Brasília. Mas o apego popular ao getulismo ficou manifesto na eleição do vice, João Goulart, ministro do Trabalho e herdeiro político de Getúlio, que teve mais votos que Juscelino.
Conterrâneo de Getúlio, Jango, como era conhecido, rico fazendeiro de São Borja, no interior do Rio Grande do Sul, tinha convite, em meados dos anos 40, para entrar para o PSD, o mesmo partido do futuro presidente JK. Foi por intervenção direta de Getúlio, amigo de seu pai, recém-saído da Presidência, que Jango entrou para o PTB gaúcho. São dados biográficos importantes, que compõem o seu perfil futuro, de trabalhista híbrido, líder indeciso, que parecia ter de ser empurrado para o seu destino quase tão trágico quanto o de seu mentor – a desistência não pelo suicídio, mas pela renúncia sem resistência, seguida do exílio.
A posse de Juscelino teve de ser assegurada pelo general Henrique Lott, então ministro da Guerra, contra oficiais que tentaram impedi-la, por considerar a composição PSD-PTB à esquerda demais. Aí o golpe de 64 teve o seu primeiro ensaio, e as duas vertentes doutrinárias do oficialato – a legalista e a linha dura – se explicitaram. Os mandatos eram de cinco anos, sem direito à reeleição do presidente, mas os vices podiam voltar a se candidatar, e sua eleição era separada da do presidente. Em 1960, Jango consolidou sua popularidade, voltando a se eleger vice de Jânio Quadros, da coligação liderada pela UDN, principal partido conservador do País. Se no mandato anterior havia certa convergência entre o PSD e o PTB, e se Juscelino em certo sentido representava o ponto médio entre as correntes liberais e trabalhistas, com sua abordagem “social-democrata” de desenvolvimento, a eleição de 60 lançou o País na rota da divergência ideológica.
Jânio. Precursor do populismo de direita que depois se atualizaria em figuras como Paulo Maluf e Fernando Collor de Mello, Jânio foi o primeiro a dominar com maestria a mensagem dos meios de comunicação de massa. Venceu a eleição empunhando uma “vassourinha” para “varrer a corrupção” e lanchando sanduíches de mortadela nos comícios , para se identificar com os trabalhadores das grandes cidades. Excêntrico, imprevisível e intuitivo, Jânio estava longe de ser um líder liberal no sentido clássico. No seu curto mandato de sete meses, não esboçou uma política econômica coerente. No ambiente internacional envenenado pela Guerra Fria – a disputa por influência entre os Estados Unidos e a União Soviética -, explorou o arraigado sentimento anti-imperialista brasileiro ao condecorar o líder guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara, ícone da Revolução Cubana de dois anos antes, que então começava a alinhar-se com o bloco comunista.
Essas ambivalências acompanhariam o drama que estava por se desenrolar, e continuariam presentes na visão de Estado paternalista, provedor e autoritário que une grande parte dos brasileiros até hoje. Mesmo que a divisão não fosse clara e linear – e talvez poucas coisas o sejam no Brasil -, havia duas visões, dois modelos, dois rumos para o País, que colidiram na composição Jan-Jan (Jânio-Jango) e nos acontecimentos seguintes.
Em aparente manobra para angariar maior apoio no Congresso, o impulsivo Jânio renunciou em agosto de 1961, denunciando “forças ocultas” nunca vistas à luz da História. Jango recebeu a notícia em Cingapura, depois ter passado pela China comunista, em missão acertada com o presidente, como parte de sua política externa desalinhada com o esquema das duas superpotências – EUA e URSS.
O golpe de 64 teve então o seu segundo – e mais robusto – ensaio. Exército, Marinha e Aeronáutica tinham cada uma seu ministro, que, juntamente com o da Guerra, marechal Odílio Denis, tentaram impedir a posse do vice, pelo fato de ser apoiado pelos partidos Comunista e Socialista Brasileiro (PCB e PSB). A posse foi garantida, mais uma vez, pela corrente legalista, liderada, agora da reserva, pelo marechal Lott, que fora candidato a presidente na chapa de Jango. Assim como em 1955, o general Humberto de Castelo Branco fez parte desse grupo. Dessa vez, no entanto, foi necessário um acordo, pelo qual o presidencialismo deu lugar ao parlamentarismo. Tancredo Neves, do PSD, foi eleito primeiro-ministro.
O incidente abriu espaço para o protagonismo de Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul pelo PTB e cunhado de Jango, que promoveu a “campanha da legalidade”. Um plebiscito em janeiro de 1963 traria de volta o presidencialismo. Jango, no entanto, seguiria com apoio insuficiente no Congresso e nas Forças Armadas, e cada vez mais dependente do respaldo das “massas trabalhadoras”, organizadas pelos sindicatos vinculados ao PTB e crescentemente hipnotizadas pela retórica febril de Brizola, que, já como deputado federal, disputava influência nacional com seu cunhado. Brizola pressionava Jango para adotar “reformas de base”. Sabendo que não havia apoio no Legislativo para elas, falava em Assembleia Constituinte (o que era traduzido por “fechar o Congresso”), e em impô-las “na marra”.
Acuado, sem alternativa de apoio, Jango, de índole conciliadora, pareceu vencer a própria relutância e atropelar a própria natureza no Comício da Central do Brasil, no Rio, no dia 13 de março de 1964, quando adotou a beligerância e a impaciência do cunhado – “vou falar em linguagem que pode ser rude”, desculpou-se. Anunciou que havia assinado o decreto de reforma agrária e a nacionalização de cinco refinarias, criticou a Constituição e citou o “supremo sacrifício” de Getúlio Vargas. Bandeiras comunistas tingiam de vermelho a multidão de 150 mil a 200 mil pessoas.
Comunismo. Em reação ao que era percebido como o risco de “comunização” do Brasil – apesar de trabalhismo e comunismo competirem entre si -, foram organizadas as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, com apoio da Igreja e de setores liberais. A Marcha começou em São Paulo, no dia 19, onde reuniu entre 300 mil e 500 mil pessoas, e se espalhou por várias outras cidades, totalizando 1 milhão de manifestantes. Eles defendiam a Constituição, a propriedade e a democracia.
Em 25 de março, cerca de 2 mil marinheiros, sob influência do PCB, desafiaram o ministro da Marinha, Silvio Mota, celebrando o aniversário de uma associação que havia sido declarada ilegal. No dia 30, Jango compareceu a uma reunião de cerca de mil cabos e sargentos no Automóvel Club, no Rio, e pronunciou seu discurso mais virulento, em que falou de “represálias do povo” contra seus adversários, financiados pelo Exterior. Era uma referência ao escândalo de ajuda financeira americana à campanha de deputados. Alarmados com a possibilidade de o Brasil converter-se numa Cuba continental, os Estados Unidos patrocinaram também o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), com sede no Rio, que fazia filmes de propaganda anticomunista.
Os dois episódios foram considerados tão provocativos para o oficialato que se especula se não foram estimulados por agentes da linha dura. Eles demoveram a maioria dos legalistas de suas hesitações – a começar por Castelo Branco, chefe do Estado-Maior. A reação foi imediata – e atropelou a cúpula. De prontidão desde o Comício da Central do Brasil, o 10.º Regimento de Infantaria, de Juiz de Fora, pôs-se em marcha às 12h30 do dia 31, rumo ao Rio. Quando entraram em contato com as tropas sublevadas na estrada, as forças supostamente legalistas se congraçaram com os companheiros e aderiram ao golpe.
EUA. Os Estados Unidos enviaram uma força-tarefa com um porta-aviões, quatro destróieres, duas escoltas e navios-tanque, para apoiar a intervenção militar. Mas deram meia-volta muito antes de se aproximar da costa brasileira. A rápida adesão dos comandantes levou Goulart a renunciar, partindo para o exílio no Uruguai. Castelo Branco venceu uma surda disputa de poder com o general Artur da Costa e Silva, líder da linha dura, e sagrou-se comandante da “revolução redentora da democracia”, como foi chamada por seus partidários. O Congresso o elegeu presidente, e ele tomou posse no dia 15 de abril.
A intenção dos setores civis que apoiaram o golpe – e aparentemente da ala dos militares legalistas liderados por Castelo – era evitar um possível “autogolpe” de Jango, no qual se presumia que ele fecharia o Congresso e imporia suas reformas de base, inaugurando uma “ditadura do proletariado” tropical, aqui chamada de “república sindicalista”. Entretanto, Costa e Silva liderou o que entrou para a história como o “golpe dentro do golpe”. Numa sequência de decretos paradoxalmente denominados “atos institucionais”, a ditadura militar foi gradualmente se instalando, com o cancelamento da eleição presidencial de 1965, o banimento de partidos, a abolição dos direitos e liberdades. A cada quatro anos, um Congresso subserviente elegeu um general-presidente, escolhido antes pela cúpula das Forças Armadas.
A ditadura durou 21 anos, deixando marcas na sociedade brasileira com a tortura e o desaparecimento de opositores. Na economia, seu legado foi ambivalente: de um lado, a inflação e o endividamento elevados; de outro, a implantação de uma importante infraestrutura no País. Toda essa história é contada em detalhes, em muitos casos inéditos, nas páginas que seguem.