Xeque nascido no Paraná não culpa apenas Israel pelo conflito
EL-BIREH, Vale do Bekaa – A casa do xeque Abdo Nasser el-Khatib tem uma vista privilegiada. Da varanda dos fundos, a paisagem é dominada pela Jabal el-Sheikh, ou Montanha do Xeque, que se ergue majestosa a 15 quilômetros dali. É o ponto entre Líbano, Síria e Israel. “É como a Tríplice Fronteira”, sorri o xeque, nascido em Jandaia do Sul, Paraná.
No pé da montanha, estão as agora famosas Fazendas de Shebaa, que a Síria “doou” para o Líbano, mas que estão ocupadas por Israel – um dos motivos alegados pelo Hezbollah para a operação que matou oito soldados e fez dois prisioneiros, em 12 de julho, desencadeando a avassaladora reação israelense. Ao lado, as Colinas do Golan, que legalmente continuam pertencendo à Síria, mas que Israel ocupa desde 1967.
Presidente do Departamento dos Emigrantes, que promove intercâmbio cultural, no Vale do Bekaa, para filhos de libaneses no exterior (uma atividade obviamente suspensa), El-Khatib está desolado. “O Líbano estava sendo reconstruído, tinha grande esperança de voltar a ser a Suíça do Oriente Médio”, lembra o xeque, muçulmano sunita como todos os 3 mil habitantes da cidade de Khirbet Rouha, 85 quilômetros a leste de Beirute.
Diante da sensível pergunta “de quem é a culpa”, El-Khatib, de 50 anos, que estudou teologia na Universidade de Medina (Arábia Saudita) e trabalhou no Centro Islâmico do Brasil, em Brasília, entre 1979 e 1991, começa falando do tradicional inimigo: “O Estado de Israel foi criado pelos ingleses, em 1948, dentro de território árabe e muçulmano, e desde então a região vive em estado de guerra.”
Mas não é só, reconhece o xeque. “O Líbano continua sofrendo com os acertos de contas de outros na sua terra”, diz ele, numa referência implícita a intromissões como a do Irã e da Síria, que ocupou militarmente o Líbano entre 1990 e o ano passado, com presença ostensiva no Vale do Bekaa.
Outra pergunta sensível: a guerra une o Líbano, historicamente fraturado por divisões confessionais? “Depois da última guerra civil (1975-90), os libaneses procuraram viver como antigamente, como irmãos”, lembra ele. “Neste momento, vemos uma união maravilhosa. Sem reparar em divisões religiosas, uns estão abraçando os outros. Os que sofrem têm o apoio do restante da população.”
Os que sofrem são maciçamente os xiitas, e esta região sunita, a cerca de 70 quilômetros do sul do Líbano, onde eles se concentram, tem-lhes servido de refúgio, embora também esteja sob ataques aéreos, mas em bem menor escala.
Em 24 cidades do Bekaa Ocidental, que somam cerca de 45 mil habitantes, há um total de 10.868 refugiados – ou quase um quarto de suas populações normais.
Em Lala, 75 quilômetros a leste de Beirute, havia, antes de começar a guerra, 4.500 habitantes. Cerca de mil foram embora, mas outros 456 vieram do sul fugindo das bombas israelenses, dos quais 116 estão na escola da cidade e 340, em casas de parentes e amigos. Antes, 35% da população era brasileira. Cerca de 600 se foram, restando 10% de brasileiros na população local.
Entre eles, está o prefeito de Lala, o libanês naturalizado brasileiro Abdul Rahman Omairi, de 66 anos. Omairi se instalou em Xanxerê, Rio Grande do Sul, em 1962 e voltou para o Líbano em 1974, um ano antes de começar a guerra civil. Montou loja em Zahle, capital do Bekaa, perdeu-a por causa da guerra, voltou para Guarapuava (PR) em 1976, e finalmente retornou a Lala em 1982 – quando começou a ocupação israelense (que na região durou até 1985).
Seu filho, Hussein, que estudou medicina em Vassouras, Rio de Janeiro, e fez residência em gastroenterologia no Hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo, é um dos líderes da comunidade brasileira na região. “Esta geração está presenciando uma guerra que não é deles”, diz Hussein, cuja filha de 6 anos lhe perguntou outro dia por que o Hezbollah não tem aviões. “Infelizmente, paga-se o preço pelas besteiras dos governos libaneses, que deixaram que outros países entrassem e fizessem o que quisessem aqui.”
Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.