Moradores da favela da zona leste, palco de violenta manifestação em maio, reclamam de abusos policiais
A Favela Tiquatira, um labirinto de cem barracos de alvenaria que se apertam ao longo de ruelas estreitas, tem três entradas, todas para pedestres apenas. A mais ampla dá para uma viela sem saída – e sem nome – que sai da Rua Olívio Guelfi, na Penha, zona leste de São Paulo. A viela tem três postes de iluminação. No primeiro deles, a lâmpada foi estourada com um tiro.
Um morador de meia-idade e com profissão, visivelmente sem ligações com o tráfico, conta, na presença de outros três moradores com perfis semelhantes, que a lâmpada foi alvejada por um policial militar, substituída por ele e de novo estourada pelo policial. A escuridão na entrada da Tiquatira parece um símbolo da opacidade nas relações entre a polícia e os moradores da favela.
Quatro meses depois do confronto entre cerca de 150 moradores e a polícia, por causa da prisão por tráfico de drogas do ajudante de pedreiro Wagner Barbosa da Silva, de 19 anos, que resultou em dois policiais feridos, um ônibus, um micro-ônibus, um caminhão e um carro incendiados – em ato semelhante ao ocorrido na semana passada em Heliópolis -, as mesmas queixas que levaram à explosão de revolta continuam fermentando. Moradores da favela – tanto trabalhadores quanto criminosos – acusam os policiais de extorquir os traficantes e de agir com truculência.
Segundo os moradores, os policiais costumam ir à favela nas quartas-feiras, supostamente para cobrar propinas dos traficantes. Em geral, dizem os moradores, ninguém vai preso. Mas alguns são espancados. Na quarta-feira, três rapazes ficaram “estirados no chão”, contaram quatro moradores. “Não prendem ninguém. Só querem dinheiro”, disseram. Um garoto aparentemente ligado ao tráfico diz ter perguntado a um policial em seu barraco se não ia revistar suas coisas. A resposta: “Não preciso revistar. Se eu quiser te levar, tenho as coisas no carro para pôr aí.”
Uma mulher disse que recentemente policiais das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) entraram num barraco com dois rapazes, armas e drogas. Depois de conversar longamente com os rapazes, num clima bastante amistoso, os policiais saíram com eles como se os estivessem prendendo. Logo depois, os rapazes voltaram, e um deles contou que tinham feito acerto com os policiais, e que sua “prisão” tinha sido uma encenação, para os moradores que observavam a cena. “Ele disse que não consegue sair do tráfico porque tem de pagar para a polícia e para o dono do negócio, e está sempre em dívida.”
MÁSCARAS NINJAS
Os moradores disseram que os policias que cometem os abusos são sempre os mesmos: “Eles conhecem cada pessoa que mora aqui, já entraram em cada barraco.” Na quarta-feira, os policiais vieram em três veículos da Força Tática, e fecharam os três acessos da favela, disseram as testemunhas. As pessoas ouvidas pelo Estado não sabem os nomes dos policiais. Referem-se a eles assim: “Tem um japonês que dá muita porrada. Tem um negão que conhece tudo aqui.” Às vezes, os policiais têm os rostos cobertos por máscaras estilo ninja.
Os abusos não atingem só os bandidos. “Eu me mudei daqui porque chegava de madrugada e cansei de tomar enquadro da polícia, de ser tratado como cachorro”, diz um manobrista de 22 anos, que veio visitar parentes. Ele conta que, depois do tumulto causado pela prisão de Wagner, no dia 13 de maio, ficou dois dias sem sair de casa, com medo. “Você aqui é confundido com qualquer coisa.” Um morador disse ter visto um policial esfregar o rosto de um rapaz no muro de blocos de concreto da viela que dá acesso à favela, arrancando-lhe a pele.
Os trabalhadores que moram na favela parecem viver no fio da navalha entre desmandos da polícia e dos bandidos. Na tarde de quinta-feira, na quadra em que se deu o confronto entre os moradores e os policiais, um adolescente veio tirar satisfação com um homem porque conversava com o repórter e o fotógrafo do Estado.
Na discussão, o garoto deu uma “gravata” no homem, um golpe que na favela se chama de “enforcar”, usado tanto pelos policiais quanto pelos bandidos. “Sabe quem é meu pai?”, perguntou o garoto. “Sou filho do Tiozinho”, afirmou, em tom de ameaça e de orgulho, referindo-se ao pai, preso. Em seguida chamou um jovem, que veio segurando algo sob a camisa. “O Guga é meu primo”, defendeu-se o homem, nomeando o suposto dono da “biqueira” (ponto de tráfico). “Ele falou o nome do Guga!”, dramatizou o garoto. “Não pode mais falar o nome dele”, advertiu o jovem com a mão sob a camisa. Supostamente, Guga foi promovido a “irmão” do Primeiro Comando da Capital (PCC).
À PRÓPRIA SORTE
Ao contrário de favelas grandes e famosas, como a de Heliópolis e Paraisópolis, que por sua repercussão atraem projetos patrocinados de organizações não-governamentais, Tiquatira está entregue à própria sorte. Há apenas uma entidade filantrópica, que presta assistência a crianças e adolescentes, e um templo da Assembleia de Deus. Mas não uma associação ou lideranças dos moradores, que façam a mediação entre criminosos, trabalhadores e polícia.
Quem trabalha afirma ter mais problemas com a polícia que com os criminosos. “Tenho mais medo da polícia do que dos caras daqui de dentro”, disse um pai de família de meia-idade. “Eles te pegam, põem droga na sua mão e acabam com a sua vida.” Um morador de perfil semelhante acrescentou, com a aprovação de dois vizinhos: “Se a polícia não viesse aqui, seria muito melhor. Se ela agisse certo, não tinha droga aqui. Mas quem alimenta o tráfico é a polícia.
“O maior progresso sentido na favela pelos moradores sem ligação com o tráfico foi a polícia ter acabado com os bailes funk, que eram chamados de “pancadão”. Os bailes reuniam até mil pessoas, incluindo consumidores de drogas de fora. Os moradores dizem que havia até crianças de 7 anos usando drogas. Nesses bailes os confrontos entre criminosos e polícia frequentemente atingiam pessoas comuns. Um morador conta que um bandido quebrou todo o telhado de sua casa, que escalou fugindo da polícia.
O “pancadão” acabou no fim do ano passado, mas a Tiquatira continuou sendo um bazar de drogas, dia e noite. Por seus acessos estreitos passa todo tipo de consumidor – desde o “noia” sem ter onde cair morto até o grã-fino com carro e roupas bacanas.