Separação geográfica entre a Faixa de Gaza e a Cisjordânia corre o risco de ser consolidada pela disputa política
RAMALLAH – A fortificação de Al-Saraya, fincada no centro de Gaza, é historicamente o lugar onde se assenta o poder nessa estratégica cidade mediterrânea. Foi erguida pelos otomanos, que dominaram a Palestina por 400 anos, do começo do século 16 ao início do século 20. Daí seu nome, uma corruptela árabe da palavra turca serail (casa). Em seguida, foi ocupada pelo mandato britânico (1923-48).
Ao se transferir para Gaza, em 1994, Yasser Arafat destinou-a ao braço armado de seu Fatah (Conquista). Ali ficava o quartel-general das Forças de Segurança Nacional, que apesar do nome funcionavam como um grupo paramilitar. Depois da tomada da fortificação, na quinta-feira, Nezar Rayyan, um dos líderes do Hamas, agradeceu a Deus e disse que ela seria transformada numa mesquita.
O plano de Rayyan fala mais sobre o significado da tomada de Gaza do que todos os discursos que o líder da ala “moderada” do Hamas, Ismail Haniyeh, venha a fazer sobre o desejo de diálogo e o respeito ao tradicional secularismo dos palestinos. Para os obstinados combatentes que em uma semana esmagaram o poder militar do Fatah na Faixa de Gaza, construído ao longo de quase cinco décadas (desde os tempos da guerrilha e do exílio), foi uma clara vitória da fé sobre a corrupção moral.
Assim como o Hezbollah, no Líbano, a força do Hamas provém não apenas do apoio logístico da Síria e do financiamento do Irã, mas, também, de sua estrutura vertical, disciplina e absoluta falta de temor à morte. Em contraste, as forças de segurança subordinadas à Autoridade Palestina estão divididas em sete grupos, cada um emprestando lealdade a um líder de facção no interior do próprio Fatah.
“O governo não tinha controle sobre o aparato de segurança”, reconheceu ontem Nasser Jumaa, deputado do Fatah, em entrevista ao Estado. “Havia conflitos entre as lideranças dos diversos grupos. Isso precisa mudar.” Como as diversas facções do Fatah mantiveram o monopólio sobre o aparato “estatal” de segurança, o governo do Hamas, eleito em janeiro de 2006 (com 74 das 132 cadeiras do Parlamento) e empossado em março, resolveu criar o seu próprio exército, que chamou de Força Executiva. O presidente Mahmud Abbas autorizou que ela tivesse efetivo de 5 mil homens. Quando foram ver, já estava com 12 mil, conta Jumaa.
A ofensiva vitoriosa do Hamas foi preparada com antecedência, como provam os túneis cavados sob instalações militares controladas pelo Fatah. “Se tivéssemos nos preparado, teríamos conseguido vencer o Hamas”, lamenta Jumaa. “Mas não na última hora.” O deputado diz que a falta de repasses da receita dos impostos – que somam US$ 562 milhões – debilitou as forças de segurança. “Nos últimos 16 meses, as pessoas não estavam recebendo seus salários. Além disso, Israel destruiu a infra-estrutura das forças palestinas em Gaza e na Cisjordânia”, lembra. “Israel favoreceu o Hamas, indiretamente.” Quanto aos americanos, a ajuda ficou só na promessa, garante Jumaa.
No momento, não há contatos políticos de alto nível entre o Fatah e o Hamas. “No futuro previsível, não há perspectivas de negociações”, disse o analista político Ahmad Arb, da Universidade Bir Zeit, na Cisjordânia. A divisão entre um “Hamastão”, em Gaza, e um “Fatahstão”, na Cisjordânia, tende a se cristalizar. No curto prazo, aparentemente, todos ganham com isso: o Hamas tem agora a sua base territorial inquestionável; o Fatah será irrigado com ajuda financeira dos Estados Unidos, da União Européia e com os repasses da receita de impostos por Israel.
No longo prazo, o vencedor parece claro aos observadores palestinos. “No passado recente, a idéia de dividir a Palestina entre Gaza e Cisjordânia era parte da estratégia israelense. Eles conseguiram”, constatou Arb. “O perigo, agora, é que a geografia seja consolidada pela separação política.”
Por trás desse cenário, há uma premissa de que a Cisjordânia não tem presença forte do Hamas. Engano. Ela é apenas discreta, em grande medida por causa da ocupação militar israelense no território, que abriga 187 mil colonos judeus, ao contrário da Faixa de Gaza, de onde eles foram retirados em 2005.
“Nas últimas eleições, o Hamas teve um forte desempenho na Cisjordânia,” recordou ao Estado Mahmud Barghuti, ministro destituído da Administração Local, partidário do Hamas. “Há espaço para todos em todos os lugares”, defendeu Barghuti, que não está saindo nas ruas de Ramallah, com medo de represálias dos militantes do Fatah. Barghuti desaprova a violência ocorrida em Gaza, mas diz que a culpa não é só do Hamas. “Muitas razões conduziram a isso”, argumentou. “Os israelenses são responsáveis, mas nós também somos.”
O ministro insiste na posição do Hamas, segundo a qual deveria haver negociações, mesmo depois da carnificina. “Houve momentos em que os israelenses mataram 500 palestinos em um mês, e Abu Mazen (nome de guerra de Abbas) e (o premiê israelense Ehud) Olmert se reuniram. Não vejo razão para não nos reunirmos, mesmo nessa situação crítica.” Humilhado, o Fatah vê. “Não aceitaríamos que Abu Mazen negociasse com o Hamas”, descartou Jumaa. Uma faixa de terra israelense de 45 quilômetros (a distância de São Paulo a Jundiaí) separa Gaza da Cisjordânia. Ela nunca pareceu tão larga quanto agora.
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