Para o bem ou para o mal, ele detém as credenciais para romper tabus
JERUSALÉM – A pergunta menos politicamente correta, porém a mais inevitável, neste momento em Israel, é: quem ocupará o imenso espaço deixado por Ariel Sharon? Dois traços que explicam a força de Sharon dificultam a resposta: o seu marcante personalismo e o caráter unilateral de suas ações.
Depois de ter tido a sua liderança desafiada no Likud, o partido de direita que ajudou a fundar nos anos 70, Sharon criou, em novembro, o Kadima (Adiante). O novo partido de centro atraiu para si não só os seus seguidores no Likud como também um grupo de descontentes do Partido Trabalhista, encabeçados pelo ex-primeiro-ministro Shimon Peres. Entretanto, a saída do Likud foi uma guinada tão intempestiva – e, por isso, tão típica do velho general – que se torna difícil imaginar o Kadima sem Sharon.
Ehud Olmert, vice-primeiro-ministro, chefe de governo interino e um dos principais herdeiros políticos de Sharon, teve na sexta-feira uma delicada reunião com Peres, que sequer formalizou ainda sua filiação ao Kadima. O que transpirou foi que Olmert pretendia selar o ingresso de Peres e de outros dissidentes trabalhistas com a oferta de uma pasta no novo gabinete ou mesmo um cargo honorífico no Kadima, mas o ex-primeiro-ministro, que vem de uma seqüência de derrotas em eleições e dentro do próprio partido, parece querer mais.
Seu trunfo: pesquisas de intenção de voto realizadas depois da internação de Sharon, na quarta-feira, que o colocam como o nome mais popular do partido, na ausência do primeiro-ministro. Tanto na pesquisa do jornal Yediot Ahronot quanto na do Haaretz, em parceria com o Canal 10 de TV, um Kadima encabeçado por Peres obteria 42 das 120 cadeiras da Knesset, o Parlamento; sob Olmert, são 39 na primeira sondagem e 40 na segunda.
Em qualquer caso, o Partido Trabalhista e o Likud vêm bem atrás – com 18 e 13 cadeiras, respectivamente, na pesquisa do Haaretz. Vários analistas advertem que essas pesquisas podem não refletir a realidade do voto nas eleições de marco, mas um estado de comoção com a súbita incapacitação de Sharon.
Mais do que uma simples disputa de poder no interior de um partido que mal se formou, a provável saída de cena de Sharon deixa enormes dúvidas sobre o futuro das relações entre Israel e os palestinos. Desde sua estrondosa – e, para os árabes, afrontosa – visita à Esplanada das Mesquitas, em setembro de 2000, ainda como líder oposicionista, fazendo renascer a intifada, o levante dos palestinos, Sharon tem agido com eles de forma unilateral, desprezando as chances de um processo de negociações de paz.
Sharon se elegeu no início de 2001, na esteira da rejeição, pelo líder palestino Yasser Arafat (morto em novembro de 2004), das condições do então primeiro-ministro trabalhista Ehud Barak para a paz. A partir daí, veio impondo, com apoio do presidente americano, George W. Bush, sua agenda centrada na garantia de segurança para Israel, que combina uma feroz perseguição aos grupos terroristas com a desocupação de áreas palestinas (toda a Faixa de Gaza e parte da Cisjordânia) que estendiam os domínios israelenses para além do que o país estava efetivamente em condições de controlar.
Assim, o arquiteto da colonização judaica nos territórios palestinos – como ministro da Defesa, da Agricultura, da Habitação e da Infra-Estrutura nos anos 70 e 80 – colocou em prática a sua descolonização. Com duas ressalvas: a colonização da Cisjordânia se solidificaria em outras áreas, que formariam blocos de assentamentos, e as fatias palestinas seriam isoladas por um muro fronteiriço, cuja construção está em estágio avançado.
A adesão de Sharon à criação de um Estado palestino – aparentemente contraditória com tudo o que ele defendeu ao longo da vida – é coerente com a noção de que Israel deve garantir sua proteção dentro de um espaço bem delimitado. A própria democracia israelense, constatou Sharon, corria riscos, com a explosão demográfica palestina em áreas contíguas ao Estado israelense sem um status político definido.
Em contraste com as enormes resistências na Knesset e no interior do gabinete, cerca de 70% dos israelenses aprovaram a retirada da Faixa de Gaza, numa demonstração de que a estratégia do general estava em sintonia com os anseios de segurança do eleitorado. Sharon conseguiu ocupar, assim, o cobiçado centro do espectro político, num país que tem oscilado entre, de um lado, a obsessão pela segurança, personificada no Likud; e, de outro, a pregação da paz pelos trabalhistas. Sharon escapou do dilema segurança sem paz ou paz sem segurança.
Considerado herói das guerras de 1948 e 1956, responsabilizado pelo massacre, por falangistas cristãos, de centenas de palestinos em Beirute em 1982, ele detinha, para o bem e para o mal, as credenciais para romper os tabus e manter a iniciativa com mudanças palpáveis, definindo a moldura das relações com os palestinos. Não há, no horizonte, quem possa assumir esse papel.
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