Em entrevista ao ‘Estado’, Abu Yahia cita o Corão para afirmar que ‘nunca se deve confiar na promessa de um judeu’
RAMALLAH – O carro vai percorrendo as vielas do bairro de El-Amari, que vão se estreitando entre os pequenos prédios geminados, até não poder passar mais. Sob o olhar curioso dos moradores, os três homens descem do carro e vão caminhando a pé, até parar em frente à casa de um líder local do Hamas, conhecido pelo nome de guerra Abu Yahia.
A porta se abre e os visitantes são levados para a sala. Em alguns minutos, entra o jovem de 25 anos, barba rala, gorducho e baixo, vestindo uma jaqueta de couro, calça de moleton e sandálias. Com um sorriso afável, o militante, casado, com um filho de três anos e uma filha de cinco, recebe o Estado para uma entrevista que se estenderia por mais de duas horas. Só não permite fotos: “Não tenho medo, mas não quero me entregar à segurança israelense.”
Ao final, a mãe de Abu Yahia, com dois filhos incomunicáveis em prisões israelenses, senta-se para ouvi-lo. O repórter aproveita para perguntar o que ela faria se um de seus filhos decidisse cometer atentado suicida. “Amo todos os meus filhos, assim como fico triste quando alguém morre, mas o que eles decidirem fazer, devo respeitar, porque é desejo de Alá”, diz ela, placidamente.
Sempre citando o Corão, Abu Yahia, que estudou até a oitava série e diz que se juntou ao Hamas desde o início da primeira intifada, em 1987, quando tinha oito anos, justifica os atentados suicidas, diz que não se pode confiar nos judeus e que o Islã vencerá, no final.
Estado – Vocês apoiam um governo palestino de coalizão?
Desde o início o Hamas tem sempre defendido que todos os combatentes e todos os grupos palestinos se unam.
Estado – Mas vocês são contra negociações de paz com Israel?
Não concordamos com as negociações com os israelenses porque eles continuam destruindo nossos locais sagrados, matando nossos filhos e os combatentes que lutam pela independência da Palestina.
Estado – E se mudar o governo israelense, vocês aceitam um acordo?
Todos os judeus são iguais. Eles negociam com você sobre a mesa e o traem por baixo. Tanto o Likud quanto os trabalhistas continuaram construindo assentamentos judaicos nos territórios palestinos enquanto negociavam a paz conosco. As colônias estão bloqueando os acessos entre as cidades palestinas. O Corão mostra que você nunca deve confiar na promessa de um judeu. Eles nunca mantêm a palavra. Por isso, todos os grupos palestinos estão chegando à mesma conclusão: temos de lutar por nossa terra.
Estado – O Hamas tem boas relações com os outros grupos?
Sim, tanto que temos feito ataques juntos. Depois da morte de Arafat, todos concordam que temos de ficar mais unidos do que nunca.
Estado – O Hamas vai lançar candidato à eleição?
Para nós não é importante se o presidente pertence ou não ao Hamas. O importante é que ele tome conta de todos os palestinos e caminhe no rumo certo. Se ele for o líder de todos os palestinos, nós obedeceremos suas ordens, independentemente de que grupo seja.
Estado – Arafat era um líder de todos os palestinos, certo? No entanto, ele era contra os atentados suicidas, e mesmo assim vocês os faziam.
Perante o mundo, Arafat se mostrava contra os atentados suicidas. Mas, aqui dentro, ele respeitava todos os que lutavam contra a ocupação israelense. Os atentados suicidas são a forma de o Hamas lutar contra a ocupação, é nossa resposta à matança do nosso povo.
Estado – Vocês cometem os atentados em nome do Islã, mas o Corão não condena o ataque a inocentes?
O Corão ensina que se alguém tenta destruí-lo você deve se proteger. Se alguém bate em você, você deve bater de volta. E aquele que começou é o responsável.
Estado – Mas o Corão não diz que os suicidas não vão para o paraíso?
Qualquer um que luta em nome de Deus tem a promessa do Corão de ir para o paraíso. Não importa a forma, seja o suicídio ou qualquer outra. Quem luta para proteger sua casa e sua terra vai para o paraíso. Na época do Profeta Maomé, os combatentes também lutavam para protegê-lo.
Estado – Os atentados suicidas transformam os israelenses em vítimas. Não é um erro político?
Depois da visita de Ariel Sharon à Esplanada das Mesquitas (considerada uma afronta pelos palestinos, dando início à intifada, em setembro de 2000), fizemos todo o possível para nos mantermos frios, para não atacá-los. Mas percebemos que isso não estava adiantando. Os israelenses continuaram matando os palestinos, impondo toques-de-recolher e cercos em toda a Cisjordânia. As pessoas sem emprego, sem dinheiro, sem nada, se prontificam a se explodir para lutar contra a ocupação. Você está aqui, Sharon o cerca e o que você pode fazer? A comida acaba, você não tem para onde ir. Sharon tem feito muitos palestinos lutarem como podem, porque ficaram sem nada.
Estado – Um palestino foi detido em Eretz (posto de fronteira com a Faixa de Gaza) com explosivos no corpo e disse que queria se explodir porque não tinha comida para dar para os filhos e o Hamas lhes daria US$ 300.
Não é verdade. O Hamas não dá um prêmio em dinheiro, dá apoio moral para aqueles que se sentem prontos para se sacrificar e ajuda a família naquilo que ela necessite, seja uma casa (quando demolida pelos israelenses), comida, etc. Eles nunca fazem por dinheiro, mas pelo desejo de fazer algo contra a ocupação. Tanto é que muitos suicidas vêm de famílias ricas.
Estado – O que o senhor diz para as mães que perdem filhos em atentados suicidas?
Segundo o Corão, se algo de ruim acontece com uma pessoa, é a vontade de Deus, e temos que respeitar. Dizemos às mães que esperamos que Deus tome conta de seus filhos.
Estado – Vocês acreditam que o “mártir” levará consigo pessoas para o paraíso?
Sim, eles levam 70 familiares. É por isso que muitas mães festejam quando seus filhos se sacrificam.
Estado – E terão virgens no Paraíso?
Eles têm direito a 72 virgens de uma beleza que não existe aqui na Terra.
Estado – O Hamas recruta os suicidas ou eles se oferecem espontaneamente?
Eles se oferecem para dar o seu corpo, não ao Hamas, mas à luta contra a ocupação. Eles sentem que estão voltando para Deus.
Estado – O Hamas recebe ajuda de fora?
Depois do 11 de setembro, os Estados Unidos têm bloqueado todas as contas do Hamas no exterior. Desde então, temos trabalhado muito mais com ajuda dos palestinos daqui dos territórios.
Estado – Vocês acreditam que vão vencer?
No fim, o Islã vencerá. Nosso sangue é o nosso combustível que nos levará a Jerusalém. Peço a um brasileiro que tenha dinheiro para construir palácios que faça um pequeno túmulo para mim na Mesquita de Al-Aqsa.
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