Maré humana no enterro de Arafat: confusão, tiros e feridos

Multidão vence bloqueio policial e ocupa complexo da Muqata para se despedir do líder palestino

RAMALLAH – Eram 14h10 em Ramallah (10h10 em Brasília) quando um homem de camisa azul em cima do telhado de uma casa começou a agitar os braços, apontando para leste. Quatro pontos negros despontaram do céu azul, aproximando-se e crescendo rapidamente, até se transformarem em dois helicópteros beges, de bandeira egípcia, e outros dois verde-oliva, do Exército jordaniano.

As 20 mil pessoas que se concentravam dentro e fora da Muqata, o semidestruído quartel-general no qual Yasser Arafat ficou confinado nos últimos três anos, começaram a gritar mais forte: “La-elaha-el-Allah” (só existe um Deus, Alá). Os helicópteros cruzaram o céu na direção oeste, deram uma volta e desapareceram no sul. A multidão prendeu o fôlego.

De repente, os dois helicópteros beges ressurgiram de trás dos prédios no flanco sul, num vôo rasante que espalhou galhos de árvores e poeira dos terrenos baldios, e incendiou a multidão: Abu Ammar (pai Ammar, seu nome de guerra dos tempos da luta armada), como Arafat é carinhosamente chamado, estava voltando para sua terra. Foi o segundo retorno de Arafat. No primeiro, há dez anos, depois de três décadas de exílio, ele veio plantar a Autoridade Palestina, semente de um futuro Estado que nunca chegou a brotar. Ontem, Arafat veio descansar de sua longa jornada.

Os helicópteros beges aterrisaram cautelosamente sobre o chão de terra da Muqata, enquanto a multidão, hesitante, abria uma clareira. Mal haviam pousado, e com as hélices ainda girando, a multidão avançou de novo, pronta para arrancar o caixão de dentro. A porta se abriu e Saeb Erekat, o negociador-chefe da Autoridade Palestina, esticou a cabeça, gritando para a multidão: “Por favor, honrem o seu líder”, conforme ele próprio contaria depois, já que ninguém podia ouvi-lo.

O plano era que a Muqata permaneceria fechada para a multidão, permitindo apenas a entrada de autoridades. Mas logo de manhã a polícia palestina havia sido vencida pela massa que acorreu ao complexo – construído pelos ex-colonizadores ingleses – para se despedir de seu líder, que morreu quinta-feira aos 75 anos num hospital perto de Paris. Policiais palestinos conseguiram apoiar o caixão no ombro, antes de serem levados pela onda humana na direção do túmulo cavado na véspera, entre duas árvores.

Milicianos encapuzados com keffiehs nas cores nacionais palestinas (verde, branco, vermelho e preto), outros com os rostos descobertos, e mesmo policiais palestinos – que normalmente não circulam armados, por determinação do Exército israelense –, começaram a disparar para o alto suas metralhadoras, fuzis e pistolas. Na confusão, pelo menos 10 pessoas sofreram ferimentos de bala, além de outras 120 que se feriram no empurra-empurra ou foram pisoteadas pela multidão.

Vários milicanos traziam nos ombros granadas propelidas por foguetes. Um grupo de homens com túnicas pretas e capuzes circulava pela Muqata empunhando espadas, num ritual particular.

“Tínhamos determinado que não haveria disparos, que não haveria grupos armados, mas não temos controle sobre Ramallah”, explicaria mais tarde Erekat. “Trouxemos policiais de vários locais, mas não temos força suficiente.”

A chegada do corpo foi precisamente calculada para ocorrer meia hora antes da oração das 14h45, a terceira das cinco preces do dia, de modo a dar tempo para uma cerimônia fúnebre. Ontem foi a última sexta-feira do Ramadã, o mês sagrado muçulmano, que, quando coincide de ter cinco sextas-feiras, como ocorreu este ano, é considerado ainda mais especial.

A presença da multidão dentro do complexo tornou impossível realizar a cerimônia como planejado. O caixão foi levado para o túmulo, os que conseguiram rodeá-lo lançaram sobre ele suas coroas de flores e o muezzin (sacerdote) entoou uma oração.

O corpo do líder palestino foi enterrado às 15 horas. Finalmente, às 15h50, os helicópteros beges decolaram, para se juntar aos outros dois verdes, que durante todo esse tempo sobrevoaram a área. Afastaram-se rapidamente, deixando uma cortina de poeira sobre a semirruína da Muqata, severamente bombardeada por helicópteros israelenses em 2001, e agora convertida num mausoléu e num monumento à resistência palestina.

Os milicianos armados saíram em grupos de cinco ou seis, ainda disparando para o alto e olhando para todos os lados enquanto desapareciam entre as ruas de Ramallah. A multidão foi-se retirando lentamente, embora continuasse a procissão e a vigília dos que só agora conseguiam se aproximar do túmulo.

Arafat teria gostado de seu funeral? Erekat, um velho amigo do líder palestino, acredita que sim: “Ele tinha um lado formal, mas tinha também uma ligação muito forte com o povo”, afirmou. “Ele teria adorado essa manifestação espontânea.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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