Tensões aumentam em Roraima, na iminência da homologação da Raposa / Serra do Sol.
UIRAMUTÃ – A maloca da Ticoça, no município de Uiramutã, norte de Roraima, guarda uma relíquia esquecida. Na cabana de taipa da mãe do tuxaua (cacique), uma espada de prata em bainha de couro sela uma antiga aliança entre índios e brancos. Foi um presente de Cândido Mariano da Silva Rondon ao tuxaua Melchior – que os índios macuxis pronunciam “Merequió” – no final dos anos 20, quando o marechal inspecionava as fronteiras do Brasil.
“A espada representa a segurança da nossa terra, herança do nosso avô”, explica Laerte, neto de Melchior. “No tempo do nosso avô, não tinha demarcação, e tinha paz. Todos trabalhávamos unidos. Por isso não queremos a demarcação.”
A iminência da homologação da reserva Raposa/Serra do Sol, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se prepara para assinar, vem acirrando os ânimos entre os índios contrários e favoráveis à criação da área contínua, que acabaria de expulsar tudo o que for considerado não-índio de seu interior, incluindo Uiramutã e parte dos municípios de Normandia e Pacaraima, além das fazendas de arroz que ainda resistem na periferia. Na área vivem cerca de 15 mil índios, de cinco etnias.
Na vila do Flexal, com mais de 500 moradores, os índios contrários à homologação falam em sair destruindo casas e pontes se ela for assinada.
“Uma coisa é certa: vai haver conflito”, diz o antropólogo alemão Erwin Frank, na região há seis anos, e defensor da homologação. O mesmo alerta foi feito ao presidente Lula pelo deputado Lindbergh Faria (PT-RJ), relator da comissão da Câmara encarregada de estudar o tema.
Os índios que querem a demarcação da terra contínua numa área de 1,678 milhão de hectares (três quartos do território de Sergipe) estão reunidos no Conselho Indígena de Roraima (CIR), apoiado pela Igreja Católica, por organizações não-governamentais e pelos membros do governo oriundos desse extrato, como os ministros do Meio Ambiente, Marina Silva, e do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, além do presidente da Fundação Nacional do Índio, Mércio Gomes.
Já os índios contrários à expulsão de fazendeiros, comerciantes, madeireiros e garimpeiros e à eliminação dos municípios, por achar que se beneficiam desse convívio, formaram três organizações. A maior delas é a Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima (Sodiurr), apoiada pelo governo do Estado, prefeituras e empresários. É difícil avaliar qual dos lados tem mais adeptos. O CIR representa mais comunidades, mas as da Sodiurr são mais numerosas.
Entre os índios da Sodiurr predominam fiéis da Assembléia de Deus, cujos templos substituíram as igrejas católicas em vilas e malocas que expulsaram os padres ou foram abandonadas por eles, por discordarem da linha política de suas pregações. Os padres são acusados de incitar os índios a roubar gado, destruir benfeitorias e invadir terras. A Igreja garante que apenas “conscientizou” os índios de seus direitos.
A divisão culminou no seqüestro, em janeiro, de três padres na vila do Surumu, pelos índios da Sodiurr e suas aliadas, a Aledicir e a Arikon. Desde então, elas mantêm um bloqueio na rodovia RR 171, que liga a região à capital, Boa Vista, para impedir a passagem de padres, estrangeiros e ativistas de ONGs.
Os índios do CIR não permitem a entrada, em suas áreas, dos membros dos outros grupos, e vice-versa. O conflito divide famílias. O líder do CIR na maloca do Uiramutã, Orlando Pereira da Silva, é irmão de um dos dirigentes da Sodiurr, José Novaes, vice-prefeito do município. Orlando desfia um rosário de “humilhações” e “agressões” dos brancos contra os índios. José garante que nunca teve problemas com os não-índios, e que a comunidade precisa do comércio, da educação e da saúde que o contato proporciona.
Para Orlando, os índios não precisam dos brancos nem dos municípios em suas áreas para obter essas coisas. Para isso, há o governo federal. Por meio de um convênio com a Fundação Nacional da Saúde, por exemplo, o CIR recebe R$ 6 milhões por ano para atender a comunidade.
Orlando, cuja maloca tem 222 moradores, está isolado na família. Sua mãe, Miquelina, de mais de 100 anos, que conheceu o marechal Rondon, e seu pai, José Pereira, de 106, acham que não há motivo para brigar por terra. José recebeu há dois anos do general Valdésio Guilherme de Figueiredo seu bastão de comandante militar da Amazônia, num gesto que lembra o do marechal Rondon, sete décadas antes.