Para novo homem forte do Iraque, organização não tem credibilidade para participar da transição
BAGDÁ – Não há espaço para a ONU na transição que o Iraque passa a viver a partir de agora. A advertência foi feita ontem pelo novo homem forte do Iraque, Ahmed Chalabi, em sua primeira entrevista depois que chegou a Bagdá, na quarta-feira. Segundo Chalabi, os americanos devem continuar no país apenas por algumas semanas. E em cerca de dois anos a transição se concluirá, com eleições democráticas.
“A ONU não ajudou na libertação do Iraque, não reconheceu a seriedade da opressão vivida no país”, cobrou Chalabi. “A ONU não é capaz nem tem a credibilidade de desempenhar um papel importante aqui.” Chalabi disse que o Programa Petróleo por Alimentos, administrado pelas Nações Unidas, “foi o mais caro da sua história, e foi pago com recursos iraquianos”, referindo-se à taxa administrativa cobrada pela organização.
“O Iraque aceitará a liderança americana neste processo”, assinalou Chalabi. “O presidente George W. Bush, muito corajosamente, assumiu a causa iraquiana, fazendo cumprir a resolução aprovada no Conselho de Segurança da ONU em setembro de 2002.”
O Estado perguntou a Chalabi como ele acha que países como França, Alemanha e até o Brasil, velhos parceiros comerciais, que se opuseram à intervenção americana no Iraque, deverão ser tratados a partir de agora, do ponto de vista do comércio e dos contratos para a reconstrução do país. “A França e a Alemanha foram libertadas do nazismo pelos EUA”, lembrou ele. “Para mim, foi muito surpreendente que se tenham oposto a libertar o Iraque. Não creio que o povo iraquiano esteja contente com eles.” Chalabi acrescentou que caberá ao futuro governo decidir a quem concede contratos, e garantiu que o Iraque cumprirá aqueles que já assinou e que espera que o país possa ter “relações diplomáticas plenas” também com os que não apoiaram a guerra.
De acordo com Chalabi, escolhido pelo governo dos EUA para conduzir a transição e, muito provavelmente, governar o Iraque, o general Jay Garner, governador militar americano, ficará aqui apenas o tempo que for necessário para restaurar os serviços básicos interrompidos pela guerra, como eletricidade, saneamento e telefone; procurar armas de destruição em massa; desarmar o Exército iraquiano; definir o destino dos prisioneiros de guerra. “Espero que isso leve umas poucas semanas.”
O próximo passo na transição, segundo Chalabi, que ontem passou o dia inteiro recebendo líderes tribais em seu quartel-general, o Clube de Caça Iraquiano, será “um governo interino conduzido por iraquianos e escolhido por iraquianos”. Esse governo, que “terá o apoio dos EUA”, formará um “comitê de especialistas” para formular uma nova Constituição democrática, que por sua vez “será exaustivamente discutida e modificada por uma Assembléia Constituinte, e depois submetida a referendo popular.” Chalabi estima que esse processo dure “não mais que dois anos”.
À pergunta sobre se o fato de ele “governar com os EUA” não ferirá o orgulho nacional iraquiano, que ele próprio exaltara minutos antes, Chalabi respondeu que, em primeiro lugar, ele não vai “governar o Iraque”, e não é candidato a nada. “Apenas estou participando do processo como cidadão que lutou toda sua vida adulta, dentro e fora do Iraque, pela liberdade e democracia no país”, explicou, modesto. “Não só eu, muitos iraquianos.” Com apoio do governo americano, Chalabi presidia o Congresso Nacional Iraquiano, frente de oposição no exílio, baseada em Londres.
“Os iraquianos não conseguiram, por conta própria, derrubar o regime totalitário, mas resistiram a esse regime”, ressalvou. “E não tolerarão um regime fantoche.” Chalabi garantiu que os EUA não querem governar o Iraque. E lembrou que a Alemanha, seis décadas depois de ter sido ajudada pelos EUA em sua reconstrução, “é independente o suficiente para se opor à intervenção no Iraque”, por exemplo.
“O povo iraquiano expressou seu desejo de democracia e de liberdade”, começou Chalabi, em rápido pronunciamento antes das perguntas, assumindo um tom como se tivesse acabado de vencer eleições, mas se referindo à virtual falta de resistência contra a invasão americana. “Bagdá está totalmente libertada do regime fascista, da ditadura criminosa do Partido Baath, que destruiu o Iraque para glorificar um regime megalomaníaco.”
Segundo Chalabi, as Forças Iraquianas Livres, milícia financiada pelos EUA que deve constituir o embrião do novo Exército do país, se dedicarão a “desbathificar” o Iraque, ou seja, depurá-lo da influência do antes todo poderoso Partido Baath, de Saddam Hussein. Os militantes do partido, que receberam armas do governo, ainda não foram desarmados, o que é um fator de nervosismo no país.
Numa pequena amostra do quanto essa força tem por fazer, ontem à tarde, enquanto Chalabi falava aos jornalistas dentro do clube, lá fora, chegava um homem ferido, que tinha saído numa picape com duas fotos de Chalabi coladas no vidro de trás, e foi alvo de cerca de 30 tiros de metralhadora, no meio da rua, em plena luz do dia.
Os jornalistas também fizeram a pergunta fatídica – para Chalabi – sobre o desfalque que ele é acusado de ter feito no Banco Batraa, do qual era sócio, na Jordânia. Depois de fugir do país, ele foi condenado em 1998 à revelia a 22 anos de prisão. “Isso foi uma agressão cometida contra mim por jordanianos a serviço do regime de Saddam, mas em breve tudo estará esclarecido”, assegurou. “Essa questão não foi levantada pelos milhares de pessoas que vieram me ver nos últimos dias.” Ninguém esperava que fosse.
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