Ex-presos festejam liberdade com saques

Penas para rusgas com o Partido Baath eram mais pesadas do que para assassinatos

BAGDÁ – Riad Mohammed Jassim ainda está saboreando a liberdade. Ele saiu da prisão na quinta-feira, depois de passar cinco anos numa cela subterrânea de um metro por um. Jassim foi condenado três vezes à prisão perpétua pelo regime de Saddam Hussein. Seu crime: desavenças com militantes do Partido Baath (Renascença), liderado por Saddam. A sorte de Jassim mudou quando os soldados americanos receberam ordens de soltar todos os prisioneiros.

Para ser condenado à prisão sob o regime de Saddam, bastava cometer uma falta muito leve. Aqueles que, por alguma razão, aparentassem constituir uma ameaça ao regime eram simplesmente executados. Basta comparar o caso de Jassim com o de outro prisioneiro recém-libertado, Abdullah Taleb Abdullah. Ele foi condenado a uma prisão perpétua, por assassinato, tendo ficado 15 anos na prisão. Da perspectiva do regime, qualquer pequeno desvirtuamento ideológico era três vezes mais grave do que matar alguém.

Abdullah, seu irmão Saad, preso há sete anos, e Alla Ghazal, há seis, passavam ontem à tarde na frente do presídio Abu Ghareb, onde estiveram detidos. Vinham numa carroça, trazendo sacos de 50 quilos de açúcar, chá e arroz, que haviam acabado de saquear na Feira Internacional de Bagdá, ao lado do presídio. O saco de açúcar, importado do Brasil, está sendo vendido pelos saqueadores nas ruas de Bagdá por 2 mil dinares iraquianos (o equivalente a US$ 0,75); e o de arroz, por 2.500.

A Feira Internacional de Bagdá é hoje o mais prestigiado centro de saques de Bagdá. Ali o governo armazenava os alimentos obtidos com a venda de petróleo, sob supervisão da ONU, já que o país estava sob embargo comercial desde o conflito do Golfo, em 1990. Até hoje, os moradores de Bagdá continuam consumindo os alimentos armazenados pelo governo de Saddam. Por falta de segurança nas estradas, a ONU ainda não pôde retomar a ajuda humanitária. A previsão do Fundo Mundial de Alimentos é de que os estoques no Iraque acabem no fim deste mês.

“Se dentro de um mês ou dois os funcionários do governo não voltarem a receber seus salários, essa gente vai começar a devorar uns aos outros”, diz Awni al-Dayri, o encarregado administrativo da Embaixada do Brasil. Um coronel do Exército vinha guardando na casa ao lado da embaixada o produto dos roubos efetuados por ele e seus homens. Al-Dayri exigiu que ele os levasse para outro lugar.

A imensa desordem reinante em Bagdá, combinada com a presença das tropas americanas, está exaurindo a paciência dos iraquianos. Cerca de 500 pessoas se reuniram ontem na frente do Hotel Palestina, uma das bases dos fuzileiros navais em Bagdá, para exigir a saída dos americanos. “Saddam e Bush são iguais”, dizia um dos slogans gritado pelos manifestantes. “Queremos um governo iraquiano. Estamos prontos a morrer pelo Iraque.”

Pela primeira vez desde domingo, tanques americanos fizeram disparos em Bagdá à luz do dia, em escaramuças com fedayn, os voluntários de Saddam. À noite, os choques costumam se intensificar. Todo o comércio, escolas e serviços continuam fechados em Bagdá, com exceção de uns poucos hotéis e cafés.

Um número muito pequeno de policiais iraquianos voltou a patrulhar a cidade, sob supervisão e escolta americanas. Mas sua presença ainda não se fez notar, numa cidade de 6 milhões de habitantes.

Jovens moradores dos bairros mais elegantes estão se voluntariando para controlar o trânsito. Com apitos e sinais de mão, eles tentam pôr alguma ordem no caos – na ausência de polícia, os motoristas iraquianos aproveitam para andar na contramão, dar a volta nas rotatórias no sentido contrário e violar todas as regras de trânsito.

Depois de 35 anos de totalitarismo, toda uma geração de iraquianos tem subitamente de aprender a lidar com a liberdade.

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*