Rejeição à invasão une iraquianos

Fora do Iraque, eles não poupam críticas nem a Saddam nem à coalizão anglo-americana

AMÃ – Americanos e ingleses parecem desapontados com a recepção no Iraque. Em conversas com iraquianos recém-chegados à Jordânia – onde podem dizer o que pensam, livres da máquina repressiva de Saddam Hussein, dos constrangimentos das forças armadas da coalizão ou da gratidão pelos alimentos que elas distribuem –, fica fácil entender a resistência popular contra a ocupação: gostem ou não do ditador, os iraquianos não aceitam a invasão de seu país, sobretudo com o número crescente de civis mortos.

“Sou contra o regime de Saddam, porque ele viola a lei universal segundo a qual todas as pessoas merecem tratamento digno”, resume Jelal Abd Hassan, de 33 anos, que há nove meses deixou sua família e seu restaurante em Muthana, sul do Iraque, e veio para Amã, onde aluga uma barraca de chá. “Mas também sou contra os americanos, que estão atacando meu povo. Se estivesse lá, lutaria para defender meu país.”

“Bush é igual a Saddam”, diz Hassan. “Ele também está matando pessoas inocentes e deveria ir para a cadeia por isso.” Hassan mostra a foto de um fuzileiro naval americano diante de crianças iraquianas agachadas, na capa do jornal Ad-Dustour: “Você chama isso de liberação?” Todos os anos, argumenta Hassan, milhares de pessoas morrem por causa do embargo americano. “Como podemos ser livres assim?”, volta a perguntar.

Uma iraquiana que vende cigarros na calçada, e pede para não ser identificada, perdeu o marido na guerra Irã-Iraque. E agora teme por seus três filhos, que estão no Exército, e suas duas filhas, em Bagdá. “Estamos indo de guerra em guerra”, diz a mulher, de 50 anos, sem ignorar a fatia de responsabilidade de Saddam em todas elas. “Mesmo que odiemos Saddam, temos de apoiá-lo agora, porque os americanos querem ocupar nossa terra”, explica. “Você aceitaria se alguém entrasse em sua casa e o expulsasse?”

A mulher também não vê diferença entre Bush e Saddam: “Se eles fossem bons, resolveriam isso pacificamente. Mas os dois estão protegidos, enquanto as pessoas estão sendo mortas.” Ela não sabe como estão os filhos. Não tem dinheiro para telefonar e mesmo os que têm estão sem notícias, porque os bombardeios de torres de comunicação nos últimos dias deixaram mudas as linhas telefônicas.

Pelas calçadas do centro de Amã, há várias mulheres iraquianas vendendo cigarros para sustentar a família no Iraque, para onde vão e vêm a cada dois ou três meses. Elas compram um maço com 20 cigarros por 1 dinar jordaniano (US$ 1,40) e vendem cada cigarro por 10 centavos. O lucro é multiplicado pela disparidade do câmbio: 1 dinar jordaniano compra 3 mil dinares iraquianos. Uma pequena fortuna no Iraque, onde um profissional liberal ganha em média o equivalente a 5 dinares jordanianos por mês.

“F…-se Bush”, vocifera outra camelô iraquiana, Zahra Abdullah Sarah, de 53 anos. “Eu não culpo Saddam, mas Bush, que veio atacar o Iraque”, diz Zahra, muçulmana xiita. Sua família é originária de Basra, no sul, a região onde a coalizão se considerava bem-vinda, por causa da perseguição do regime de Saddam contra a população. Muthana, a cidade de Hassan, fica na mesma região. Os xiitas representam 70% da população do Iraque, tradicionalmente governado pela minoria sunita.

“Os americanos matam uns aos outros, se drogam, e agora querem transferir seus problemas para o Iraque”, analisa Zahra. “Foram os israelenses que disseram para eles virem.” Ela diz que seu marido, de 53 anos, e seus sete filhos estão no Exército, defendendo o país.

Akil al-Fadel, de 18 anos, e os dois irmãos preferiram não pagar para ver. Vieram de Basra há três meses. “Há pessoas ligadas a Saddam que estão em Basra, mas não são só eles que estão resistindo à invasão. O povo também está”, testemunha Al-Fadel. “Mesmo que não houvesse gente de Saddam lá, o povo estaria resistindo”, diz ele, jogando por terra a versão americana de que só os beneficiados do regime opõem resistência.

“É verdade que Saddam infligiu muita dor ao nosso povo”, reconhece o rapaz, que agora sobrevive vendendo chá no Anfiteatro Romano, um dos principais pontos turísticos de Amã. “Ele odiava o povo do sul, mas agora precisa de nós.” Os moradores de Basra e de todo o sul do Iraque estão longe de serem os aliados automáticos com os quais parecia contar a coalizão.

Mas a resistência popular aparentemente inesperada não será o último obstáculo para os planos da coalizão. Mesmo que consiga derrubar Saddam, a próxima etapa, de construção de um novo regime, não será fácil. “O povo iraquiano é teimoso”, adverte o oposicionista Jelal Abdel Hassan. “Ninguém consegue governá-lo sem demonstrar que é forte, como Saddam. Será muito difícil substituí-lo.” Não basta ser de oposição, odiar Saddam ou mesmo ter contas a acertar com ele para aceitar a intervenção da coalizão. Quando os kuwaitianos recorreram aos EUA para expulsar as tropas iraquianas, em 1991, foram alvo de desprezo no mundo árabe. Agora, a invasão da coalizão fere fundo o orgulho nacional dos iraquianos.

Independentemente do que pensem de Saddam, os iraquianos acreditam que seja problema deles. Isso é algo que o governo americano, a julgar pelas declarações de seus principais integrantes – transmitidas ao vivo com tradução simultânea pelas TVs árabes – simplesmente parecem não entender.

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*