Programação é dedicada a ridicularizar Bush e enaltecer a força do Iraque
AMÃ – No que podem ter sido as suas últimas horas de transmissão sob controle de Saddam Hussein, a TV estatal iraquiana dedicou ontem sua programação à propaganda de guerra: declarações de autoridades menosprezando as aptidões bélicas dos americanos, iraquianos e estrangeiros jurando lutar para defender o Iraque, mensagens patrióticas e orações.
Um major do Exército iraquiano entrevista dois sírios, um magro, de túnica, e outro rotundo, de farda camuflada, dizendo que vieram ao Iraque para a jihad – a defesa da religião muçulmana contra o que o próprio George W. Bush chamou de uma “cruzada”, lembram eles, referindo-se à expressão usada pelo presidente americano depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Bush depois se arrependeu da infeliz analogia.
Um líbio e um egípcio também fazem declarações semelhantes, enquanto as câmeras mostram homens fardados fazendo, sem grande entusiasmo, “exercícios militares”, pendurados numa corda. “Saddam é o líder dos mujaheddin (combatentes da liberdade)”, diz um deles. “Vamos vencer, inshallah (se Deus quiser).” De repente, o intérprete contratado pelo Estado toma um susto:
“Esse aí é meu vizinho!” Jordaniano de origem palestina, Farad al-Afakhani, abastado dono de supermercado, aparentemente deixou tudo para ir lutar a jihad no Iraque. A sessão de bravatas continua. Com um obus de fabricação russa em cada mão, um combatente diz que “uma é para Bush e outra para Blair”.
Corta para a gravação de uma entrevista com o ministro da Informação iraquiano, Mohamed al-Sahhaf. Um locutor a introduz dizendo que o “Ministério da Informação” dos EUA (um órgão até então desconhecido) avisou a todos os parentes dos 250 mil soldados enviados para o Golfo que, se algum militar for morto, não é para contar para ninguém: aparentemente, os americanos querem escamotear suas baixas.
Al-Sahhaf aparece, comentando a “notícia”. “Será que Bush está pedindo para enterrarmos todos os soldados americanos em valas comuns?”, ironiza ele. “O que poderemos fazer para mostrar que eles não morreram? Porque se eles serão mortos se invadirem o Iraque, não resta a menor dúvida.” Al-Sahhaf insiste no tema, com um sorriso sarcástico: “Pela lei, como poderemos tratar esses soldados? Como mercenários?”
De acordo com o ministro, os americanos estão dizendo para seus soldados que a ocupação do Iraque será um “passeio”. Usando um expediente parecido ao apelo de Bush em seu discurso de segunda-feira, Al-Sahhaf adverte os soldados americanos a “não invadir o Iraque, porque serão mortos”.
O ministro conta que, quando a ex-primeira-ministra turca Tansu Ciller visitou o ex-presidente americano George Bush, pai do atual, em seu rancho no Texas, perguntou-lhe por que não mandou as tropas ocuparem Bagdá. Bush-pai teria respondido: “Porque não somos loucos de mandá-los para o inferno de Bagdá.” Agora, comenta Al-Sahhaf, “esse bobalhão do Bush-filho resolveu mandar as tropas para cá.” E conclui: “Vamos preparar um cemitério para eles.”
A entrevista termina e por algum tempo a TV mostra imagens de paisagens e monumentos do Iraque, numa espécie de videoclip. Noutra gravação, uma longa oração é recitada, com uma foto de Saddam rezando, mãos juntas, rosto contrito.
Começa o telejornal da 1 da tarde, “transmitido direto do Castelo do Desafio”. O locutor informa que o Conselho Nacional Iraquiano se reuniu e decidiu “defender o Iraque e lutar contra os americanos”. Saadoun Hamadi, presidente do Partido Baath, de Saddam, e o único do país, declara: “Estamos prontos, organizados. Todo o mundo ficará do lado do Iraque, porque é o lado da razão.”
A tarde e a noite são dominadas por imagens de líderes tribais e religiosos expressando seu apoio ao presidente – “Saddam é o Iraque e o Iraque é Saddam” – e convocando à jihad. No noticiário das 7 da noite, o locutor diz que “o bobalhão do Bush” – dificilmente o nome do presidente americano é pronunciado sem esse adjetivo – “está se metendo num assunto que não é dele, mas do povo iraquiano”.
Noutro assunto que também parece ser dos iraquianos, porém, o telejornal não toca: a suposta fuga seguida de morte do vice-primeiro-ministro Tareq Aziz. Enquanto o locutor vitupera contra os americanos, outras emissoras árabes mostram uma coletiva ao vivo de Aziz, para desmentir a história. Se numa guerra a primeira baixa é a verdade, então esta já começou.
Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.