Terra Indígena Vale do Javari, onde a Funai mantém frente de contato, acaba de ser delimitada.
AMAZONAS — “Ifan, ubi-boa-nec-tchó!” O grito de Xic-xu atravessa o rio e ecoa na floresta: “Ivã, eu vou lá para cima!” Xic-xu e o pequeno grupo de índios isolados que ele e sua mulher Maiá lideram estão aflitos. O motivo vê-se nos seus gestos de se coçar e bater as mãos espalmadas por todo o corpo: o mosquito pium ataca.
“Até a fala deles bota medo na gente”, diz um membro da Frente de Contato, para emendar, sem tirar os olhos do binóculo, com um misto de temor e admiração: “Se você olha de perto, os dentes deles são perfeitos, não têm uma cárie.”
O chefe da Frente de Contato, Carlos Henrique Nantes, pega a espingarda e entra no bote, com um colega da Fundação Nacional do Índio (Funai) e os dois intérpretes, Ivã e Tepi, da tribo matis. Atravessam a confluência dos Rios Ituí e Itaquaí e vão tentar convencer os corubos a não ir embora ainda, a esperar o barco da Funai, trazendo medicamentos para malária e vacina contra febre amarela e hepatite B — os primeiros remédios de branco que tomarão.
É um momento definidor no imprevisível relacionamento entre a Frente de Contato e os índios, que há um ano mataram um dos principais membros da equipe da Funai. Os 15 índios corubos têm de escolher: subir ao longo do Itaquaí, para ficar livres do pium — “o que come a pele”, em tupi, e pode afetar a visão — ou confiar no branco, que diz ter meio de espantar a febre e aliviar a coceira. A conversa prolonga-se, no início de tarde de domingo.
Corubos e matis animam-se, soltam gargalhadas, enquanto os dois brancos parecem um pouco alheios. Meninos e botos nadam no rio caudaloso.
Os índios decidem ficar e aguardar os remédios. Um menino está com malária e uma menina, com suspeita. Os funcionários da Funai conseguiram coletar sangue do menino. O exame deu positivo. A menina, depois de assistir ao que se passou com o menino, não deixou tirar sangue dela. Mas os olhos vermelhos denunciam a malária.
O grupo é composto de cinco homens, quatro mulheres e seis crianças. Ainda se sabe muito pouco dos corubos. O contato começou em outubro de 1996.
Então, eram 21. Não se sabe o que aconteceu com os outros. A Funai estima que esse grupo seja parte de uma tribo maior de corubos, encerrada na selva.
Esses e outros índios isolados e mais 11 etnias conhecidas habitam a Terra Indígena Vale do Javari, megarreserva no sudoeste do Estado do Amazonas, cuja delimitação acaba de ser assinada pelo presidente da Funai, Sulivan Silvestre Oliveira. Ainda este ano, o presidente Fernando Henrique Cardoso assina a homologação.
Os corubos são os únicos dos (estimados) seis grupos étnicos de índios isolados do Javari com os quais a Funai iniciou contato. Da existência dos outros se sabe por vestígios encontrados na selva, por malocas avistadas de avião, ou por encontros, em geral violentos, com outros índios e com brancos.
Os corubos são nômades. Andam muito, do Rio Ituí até o Quixito (ver mapa).
Têm várias malocas espalhadas pela área. A mais próxima está a um dia de caminhada da Frente de Contato da Funai, selva adentro. A equipe de dez integrantes atrai os corubos para a beira do rio com os chamados “brindes” — basicamente, banana pacovã (grande, das de fritar) e farinha de macaxeira (mandioca). Vez por outra os índios pedem instrumentos, como panelas, machados e facões. Pelos intérpretes, os membros da Funai combinam com os índios o próximo encontro. Tem havido um por semana, em média. “É o tempo de a voadeira vir de Tabatinga com o que eles pedem”, diz Nantes.
Tepi, um dos intérpretes, é neto de Macã, que foi roubada pelos matis numa guerra com os corubos, muito tempo atrás. Macã ensinou a Tepi um pouco do vocabulário corubo. As duas línguas pertencem à mesma família, pano, e guardam semelhanças. “Eles falam misturado como os maiorunas”, compara Ivã, referindo-se a outro idioma pano. Às vezes, Tepi e Ivã têm de repetir e gesticular para se fazerem entender.
Os corubos são bem mais primitivos que os matis. Para a guerra, usam apenas bordunas, que lhes valeram a designação “caceteiros”; para a caça, uma zarabatana tosca. Já os matis têm arco e flecha e zarabatanas melhores. No leste do vale, há índios isolados “flecheiros”.
Os corubos caçam caititus (porcos-do-mato) com lança, catam jabutis, cultivam mandioca e uma batatinha roxa e doce. Mas não fazem roçado limpo.
Cavam buracos no meio do mato e plantam. Comem também o coco pupunha. Às vezes, roubam das plantações e criações das cinco famílias de ribeirinhos que restam na área. “Eles vêem tudo isso aqui como sendo deles”, explica Nantes, de 35 anos, na região desde 1989. A frente vai ao local, avalia os prejuízos e indeniza os brancos.
No contato realizado no domingo, 28, os corubos estavam desarmados. No dia 22 de agosto, ao contrário, eles empunhavam as bordunas. Os funcionários da Funai Raimundo Batista Magalhães, o Sobral, e Joaquim Santana Braga desceram do barco para deixar banana e farinha em cima do barranco.
O plano era só depositar os brindes e voltar. Sobral, no entanto, resolveu tirar fotos. Fotografou um índio. Quando se virou para fotografar uma índia, o primeiro lhe desferiu um golpe na cabeça e em seguida no braço e no lado direito do rosto. Sobral caiu, ainda respirando, mas sangrando muito. Braga foi golpeado nas costas, mas conseguiu pular o barranco. Os companheiros da frente, que assistiam, do outro lado do rio, deram dois disparos para o alto. Os índios correram para dentro da mata.
“Quase morro também”, suspira Braga. Ele aponta vários erros cometidos naquele dia. A única arma que levavam era um revólver, que Sobral nem teve tempo de sacar da cintura. “Os índios não respeitam arma pequena.” Só se deixam impressionar por espingardas. A orientação, naquele estágio do contato, era apenas deixar os “brindes” na beira do rio. E nunca descuidar.
Era de se prever que, na primeira chance, esses índios matariam um branco. “Eles não sabem o que é Funai”, explica Nantes. “Não diferenciam entre a gente e madeireiros e caçadores, que mataram parentes deles.” A Funai estipula cinco anos, em média, para considerar consolidado o relacionamento com um grupo isolado. Há mais de 50 grupos isolados na Amazônia Legal e 12 frentes de contato. No dia da morte de Sobral, estava de intérprete o índio maioruna Daniel — que também levou uma bordoada nas costas. Os maiorunas não entendem os corubos tão bem quanto os matis.
Na verdade, ninguém sabe o motivo exato do assassinato de Sobral. Os intérpretes já tocaram no assunto várias vezes, mas os corubos desconversam: não se lembram, não sabem. “Para eles, matar o Sobral foi uma coisa corriqueira, natural”, disseram ao Estado vários funcionários da Funai. O assassino está lá, no meio deles. Os colegas e amigos de Sobral, que tinha mais de 20 anos de frente de contato, têm de trabalhar com ele.
Os membros da frente não se embrenham pela selva. Ninguém sai sozinho da base. Revezam-se em plantões. O posto está instalado num barco ancorado e num sobrado de madeira flutuante. O rádio alcança Manaus e há uma televisão, com antena parabólica.
O Vale do Javari tem 16 aldeias. A Funai mantém postos em quatro delas. A menor aldeia conhecida tem nove índios. São os culinas, que vivem na margem direita de um igarapé afluente do Rio Curuçá. Na maior, vivem cerca de 300 maiorunas, à margem direita do Jaquirana.
Uma aldeia típica é a dos matis, formada por duas malocas grandes, que abrigam cerca de 200 índios. Cada matis pode ter até duas mulheres. Cultivam mandioca, banana, milho, cará e pupunha. Sua festa mais característica é o maruim, em que adultos se pintam com carvão, cobrem-se com máscaras feitas de folhas e chicoteiam as crianças, para elas não terem preguiça. Na ocasião, tomam caiçuma, bebida alcoólica feita de caldo-de-cana, mandioca ralada e cará e fermentada com saliva.
Os matis caçam com espingarda, flecha, cachorro e armadilha. Pescam nos lagos, com o veneno timbó. Os índios do vale não comem qualquer peixe. A abundância permite escolher dentre os de carne mais tenra: matrinxã, tambaqui, surubim e jundiá. Do tucunaré, considerado nobre pelos brancos, os matis não fazem questão. Jacaré e boto, nem pensar.
O índio maioruna Benito, de 22 anos, vive na Aldeia Lobo, no igarapé de mesmo nome. Veio para Atalaia do Norte há cinco meses, para tratar-se de tuberculose. Sua aldeia tem cerca de 200 índios. Plantam mandioca, banana e batata. Caçam caititu, anta, veado e macaco. Benito quer voltar quando estiver bom. “Gosto daqui, mas precisa de dinheiro, e não tenho”, explica.
“Lá, não preciso comprar nada.”
O Vale do Javari era a grande mina do extrativismo do sudoeste do Amazonas, antes de ser identificado como terra indígena e bloqueado pela Funai e pelo Ibama, com apoio da Polícia Federal. Os órgãos estimam ter eliminado 90% das atividades ilegais. O bloqueio foi erguido em 1996, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) apreendeu mais de 21 mil metros cúbicos de madeira, incluindo mogno, cedro e jacareúba.
Cerca de 80% da área dos municípios de Atalaia do Norte e Benjamin Constant passará a pertencer à reserva. Os madeireiros estão falidos. Os lenhadores, que trabalhavam para eles, perambulam pelas cidades, à cata de biscates. Muitos foram embora. Outros voltaram-se para o narcotráfico, nessa que é uma das fronteiras mais problemáticas do Brasil, na intersecção com a Colômbia e o Peru.
Na quinta-feira, 25, cerca de 300 pessoas reuniram-se na Câmara Municipal de Benjamin Constant para discutir as conseqüências da demarcação. Estavam o presidente do Ibama, Eduardo Martins, representantes da Polícia Federal, o deputado Euler Ribeiro (PFL-AM) e o bispo do Alto Solimões, d. Alcimar Magalhães, irmão do maior madeireiro da região. A Funai não foi convidada.
O governo procura explicar as razões da demarcação e justificar suas ações repressivas na área, enquanto acena com indenizações e programas de conversão econômica — do extrativismo para atividades produtivas.
“Não somos contra a demarcação, mas contra a injustiça de dar tanta terra para tão pouco índio”, diz o madeireiro Rosário Galate, de Atalaia do Norte, que teve sua madeira apreendida e pagou multa de R$ 250 mil em 1996. “O homem daqui não sabe trabalhar a não ser no extrativismo”, analisa. “Agricultura e pecuária não dão resultado.”
O madeireiro, que hoje vive de serrar toras trazidas por lenhadores, garante que há “um manejo natural” na floresta: “Quando o cedro cai, espalha milhares de sementes.” O lenhador corta árvores na beira de um igarapé e segue para outra área. Só volta para lá dentro de 15 ou 20 anos. “A área é explorada há 50 anos e as árvores só têm aumentado”, conclui Galate, na linha de argumentação da maioria dos brancos não-funcionários do governo na região.
Fora da reserva, estão só 10% das madeiras da região, segundo Galate, em parte do Rio Quixito e num pequeno trecho do Itaquaí. “Mesmo nessas áreas, o governo cria problemas”, diz ele. “Quem tem serraria, é tratado como marginal, é mais perseguido do que traficante.”
“Falta honestidade do governo ao falar com a gente”, denuncia Álvaro Magalhães, de Benjamin Constant, o maior madeireiro da região. “A Funai nunca nos procurou, nunca apresentou um ofício dizendo que lá era área indígena.” Magalhães trabalhava com US$ 1 milhão em estoque. Mostra as planilhas com a lista de financiamentos aos lenhadores. Total: US$ 960 mil.
Com a apreensão da madeira, Magalhães perdeu esse dinheiro. “Fiquei devendo para fornecedores, para o comércio e para o governo, em obrigações sociais.” Estima que mais de 2 mil pessoas trabalhavam para ele.
Segundo o advogado Luiz Henrique Braz, de Benjamin Constant, há cerca de 60 pessoas presas em Tabatinga — na fronteira com a Colômbia — por envolvimento no narcotráfico. Os traficantes pagam R$ 200 por quilo para levarem cocaína de Tabatinga e Benjamin para Manaus. A maioria acaba presa. O advogado afirma que o bloqueio do Vale do Javari fez crescer a criminalidade, a prostituição e a mendicância nas três cidades, que somam 85 mil habitantes.
O mais irônico é que foi o governo federal que incentivou a ocupação da região, trazendo imigrantes nordestinos do fim do século passado até a 2.ª Guerra Mundial. Os avós de Magalhães chegaram em 1915, como “soldados da borracha”. Seu irmão, Alzenir, tinha 21 seringais quando morreu, em 1995. Magalhães mostra as escrituras.
Segundo o advogado Braz, existem na área centenas de títulos definitivos, concedidos a partir de 1896. Diz que já foi procurado por oito proprietários de 20 fazendas, para entrar com processo de exclusão de suas propriedades da área indígena. Se a exclusão for rejeitada, o que o advogado considera mais provável, pedirá indenizações à Funai.
Magalhães afirma que extraía a borracha com financiamento do Banco do Estado do Amazonas. Em 1980, foi a vez de o Banco do Brasil emprestar dinheiro para a madeireira. Tanto ele quanto Galate insistem que não trabalhavam com máquinas, mas com machado e terçado (facão), em corte seletivo. Funcionários do Ibama e da Funai riram sarcasticamente ao ouvir essa versão. Garantem que eles usavam não só motosserras, mas tratores.
A demarcação do Vale do Javari interditou o acesso dos brancos aos melhores rios e lagos para a pesca. Restaram, saturados, o Javari e o Curuçá, que marcam a divisa da área indígena.”A gente não sabe qual vai ser nosso fim aqui”, revolta-se João Vieira da Silva, presidente da Associação dos Pescadores da região, com 775 membros. “Pescamos para comer, ninguém vende.”
É comum ouvir referências a uma vila de americanos na cabeceira do Ituí, com avionetas que entram e saem sem nenhum controle. Dizem que são evangélicos e prestam assistência aos índios marubos. Os moradores especulam se não fazem biopirataria e outros contrabandos. “Os americanos podem passar, nós não”, conclui, amargo, o presidente da Associação dos Pescadores.
Getúlio Francisco da Silva, de 42 anos, morava na boca do Rio Branco, um braço do Itaquaí. Plantava mandioca, milho e cana. Picava seringueira e cortava madeira. “A Funai chegou e disse que a gente não podia ficar mais.”
Silva não se adapta à vida na cidade de Benjamin. “Lá no interior é onde pobre pode criar filho”, explica. “Aqui, tudo tem dono; se vai cortar um pé para comer, não pode.”
A única saída para a região é trocar o extrativismo pela produção, avalia Erland Gomes, chefe do Escritório Regional do Ibama, com sede em Tabatinga. O Ibama está incentivando a criação de tartarugas e peixes em represas. Fornece os animais e a assistência técnica, enquanto as prefeituras constroem as represas.
A Prefeitura de Tabatinga está formando um viveiro de mudas dos frutos camu-camu (rico em vitamina C), araçá, cupuaçu e pupunha, para estimular a agricultura. Segundo o secretário municipal de Produção, o técnico agrícola Raimundo Zoroastro, as mudas estão tendo de ser adaptadas para os terrenos de várzea e charco, típicos de Tabatinga.
Os índios já sentem pena dos brancos. “Estamos buscando meios para que os ribeirinhos criem suas associações e condições para sobreviver”, diz Clóvis Marubo, coordenador-geral do Conselho Indígena do Vale do Javari. O Civaj está promovendo um “levantamento socioeconômico” para ver como os moradores da região podem sobreviver trabalhando fora da reserva. “Tem muita coisa, só que eles não sabem aproveitar”, diz o marubo. “Se ficassem em suas terras dentro da reserva, plantando e pescando, tudo bem, mas entram para explorar.”
O Civaj recebe ajuda de vários organismos internacionais. A Terre des Hommes paga o telefone, a água, a luz e viagens. A Médecins sans Frontières forma agentes de saúde índios. A Friends of the Earth forneceu rádios para as 16 aldeias do Vale do Javari. O Civaj é uma das 56 integrantes da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. Em seu escritório, em Atalaia, o Estado encontrou o único computador funcionando na região.
A inversão não pára aí. “Quando construímos a Casa do Índio, em 1997, empregamos 40 pessoas”, diz Clóvis. “Até hoje, todo dia vem gente aqui pedir emprego.”