Delações produzem verdades e mentiras

Convertido em lei em 2002, recurso gera polêmica com escândalo de corrupção

 

Em 1775, sir John Fielding, um juiz cego, conduziu o julgamento de um intrigante caso de estelionato na Inglaterra. Dois irmãos gêmeos, Robert e Daniel Perreau, cavalheiros das altas rodas de Londres, foram acusados de forjar um título de 7.500 libras. Os dois jogaram a culpa na concubina de Daniel, Margaret Rudd, uma bela e educada cortesã. Margaret jurou inocência. No decorrer do julgamento, resolveu colaborar com a Justiça, delatando seus cúmplices.

No fim, sir John condenou os irmãos à morte e absolveu Margaret. Tratados foram escritos sobre o assunto, e até hoje não se sabe ao certo o grau de culpa de cada um naquela história. A inteligência manipuladora de Margaret deixou um fio indelével de suspeita no ar.

O caso Perreau-Rudd inaugurou a delação premiada na Inglaterra. Passados dois séculos, uma intrigante teia de empréstimos forjados enreda no Brasil cavalheiros de reputação ilibada – e outros nem tanto. Não faltam cortesãs na história. Todos começam jurando inocência. Depois, como Margaret, os que têm menos a perder “contam o que sabem”.

A história não terminou. Mas já deixa interrogações no ar: o que sai das delações premiadas é verdade ou manipulação? Como no caso Perreau-Rudd, a resposta é: as duas coisas.

A delação premiada foi explicitada no Brasil em 2002, numa lei sobre tráfico de drogas. Desde então, vinha sendo discretamente empregada. Extrapolou os círculos jurídicos e se tornou polêmica no mês passado, quando o doleiro Antonio Oliveira Claramunt, o Toninho da Barcelona, condenado a 25 anos, decidiu falar sobre os milhões que teria repassado ao PT e ao PP, na esperança de ter a pena reduzida, em segunda instância.

Em declaração registrada no 8.º Tabelião de Notas de São Paulo, Marcelo Viana, ex-funcionário de Toninho, descreve como o advogado do doleiro, Ricardo Sayeg, tentou induzi-lo a aumentar sua história. Viana conta que entregou duas vezes, em 2002, US$ 5 mil no gabinete do deputado Devanir Ribeiro (PT-SP), então vereador, ao filho dele, Marcos. Diz que Sayeg lhe propôs declarar que eram US$ 50 mil, e todos os dias. “Nem ouvido você será”, teria prometido o advogado. “Confirmando a delação do Toninho, você será beneficiado também ou até absolvido.” Sayeg não retornou ligações do Estado.

ALGEMAS

Em seguida veio a prisão de Rogério Buratti, ex-assessor do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, na prefeitura de Ribeirão Preto. Algemado e vestindo o macacão laranja de presidiário, Buratti, acusado de fraude em contratos de limpeza urbana e de enriquecimento ilícito, delatou seu ex-chefe.

Foram três depoimentos no mesmo dia, referentes a três inquéritos distintos. Entre o primeiro e o segundo, o promotor Sebastião Sérgio da Silveira saiu na porta da delegacia e informou aos jornalistas que Buratti havia dito que, quando prefeito, Palocci teria cobrado para o PT propina de R$ 50 mil mensais da empresa Leão Leão. Foi o suficiente para o mercado desabar. E para o Ministério Público ser acusado de irresponsabilidade. Depois de depor, Buratti foi solto.

Para Roberto Telhada, advogado de Buratti, que foi contra o acordo, seu cliente foi preso apenas para delatar. Silveira nega: “Ele foi preso porque estava mandando um corretor de imóveis destruir provas.” Em qualquer caso, para o advogado, o acordo foi contraproducente. “A delação colocou todo o processo sob a eiva da nulidade”, diz Telhada. “Haverá gente questionando esse depoimento daqui até o Supremo.”

E há, claro, Paulo Maluf. O ex-prefeito de São Paulo e seu filho, Flávio, amargam duas semanas na carceragem da Polícia Federal depois de terem sido delatados pelo doleiro Vivaldo Alves, o Birigüi. Gravações de conversas telefônicas entre Birigüi e um colega revelam que o delegado Protógenes Queiroz, da PF, ofereceu-lhe “presente” em troca da delação: continuar tocando a vida e os negócios, em liberdade. Os advogados de Maluf vêem indução e deturpação no caso.


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