A sociedade é heterogênea e a estrutura de governo, multipolar. Mas todos estão juntos na questão nuclear
TEERÃ – Manhã de sábado, primeiro dia útil da semana, e o Grande Bazar de Teerã fervilha. Noivas vêm gastar seus dotes para equipar o futuro lar, donas-de-casa apressadas procuram reabastecer-se, turistas deslumbram-se com os tapetes persas, carregadores empurram carrinhos com pilhas de eletrodomésticos, judeus com sobrenomes “persianizados” lustram suas jóias de ouro e prata, homens de negócio sobem as escadas para as sobrelojas, onde se encontram os escritórios.
Detrás das vitrines e dos balcões despretensiosos, que fazem as vezes tanto de lojas de varejo quanto de mostruários atacadistas de grandes representantes comerciais monopolistas, fecham-se negócios que se contam aos milhões de dólares. E que se organizam segundo grêmios, como há muitos séculos.
O ancestral centro gravitacional da economia mercantil persa, ocupado pelos descendentes de 150 famílias, não só sobrevive mas prospera sob a Revolução Islâmica de 1979. Ministros, juízes, aiatolás são filhos de bazaris. Claro que alguns dos que se identificavam mais com o regime do xá Reza Pahlevi enfrentaram dificuldades, mas, até entre esses, uma parte voltou do exílio e reocupou seu espaço. “Ninguém se atreve a nos dar ordens”, resume um herdeiro cuja família detém 500 das milhares de lojas do Grande Bazar.
A Revolução, que estatizou a indústria petrolífera, os bancos, as traders e as fábricas, deu lugar a novos-ricos, parentes e amigos de revolucionários que se locupletaram com contratos e joint-ventures com o Estado, que concentra cerca de 80% do PIB iraniano. Mas os bazaris seguiram acomodados em seus lugares, sob pena de o regime não perdurar. São o que se poderia chamar de a elite laica iraniana. “Somos bastante religiosos”, diz um grande bazari. “Mas não concordamos com a mistura entre religião e política que esse regime faz.”
A Revolução Islâmica foi fortemente inspirada num ideal de justiça social, em contraposição à monarquia liberal do xá, francamente aberta aos investimentos estrangeiros no petróleo, que, mesmo depois de nacionalizado, em 1951, continuou provendo multinacionais com lucrativos contratos remunerados em espécie, e exacerbando a desigualdade entre ricos e pobres. Um ideal que tem uma ressonância profunda no imaginário xiita e na identidade iraniana.
O profeta Maomé não provinha de uma das famílias abastadas que se revezavam no poder na Península Arábica. A unificação e expansão árabe sob a espada do Islã contentou os califas que se revezavam no poder. Até que ele nomeou seu genro, Ali, seu sucessor, em vez de recorrer ao costumeiro rodízio entre os califas. O descontentamento se aprofundou quando Ali, por sua vez, escolheu o filho, Hussein, para sucessor. Para completar, Hussein se casou com a filha do rei persa Yazdjard III, o último da dinastia sassânida.
O casamento selou a expansão muçulmana rumo à Pérsia, legitimou o Islã como religião nacional persa, separou definitivamente os sunitas árabes, que seguiram os califas da península, dos xiitas persas. E instilou no imaginário dos persas, sob ocupação árabe, o sentimento do povo oprimido que no entanto se sente superior a seus dominadores, e que clama por justiça social, como a mensagem original do profeta Maomé.
“O Islã nasceu num povo bárbaro, no sentido depreciativo, sem cultura e sem piedade”, diz a professora de literatura Najmeh Shobeiri, das universidades Azad e Alameh Tabatabaie. “Quando chegou à Pérsia, encontrou uma civilização de cinco milênios, que tinha livros, aquedutos, rede de esgoto, que já usava talheres antes de Cristo, e que tinha uma religião monoteísta, o zoroastrismo, cujos princípios maniqueístas eram: pensar bem, falar bem, fazer bem.”
A Revolução de 1979 resgatou essa complexa mescla de autopiedade e orgulho. E a perdeu, ao longo desses anos. Os pobres continuaram pobres, os bazaris continuaram ricos. E entrou em cena uma casta de novos-ricos apaniguados, visíveis nos carros de luxo que desfilam por Teerã – sinais aparentes de riqueza que os bazaris, como quaisquer velhos ricos, preferem não ostentar.
Há uma ironia aqui. Depois de 1979, o governo iraniano investiu na zona rural e ofereceu maior assistência aos migrantes pobres nas grandes cidades. “Era a revolução deles”, diz o economista Saidi Laylaz, que está fazendo um doutorado em história sobre esse tema.
Com isso, o governo converteu zonas rurais em urbanas e estimulou o êxodo rural. Em 1979, um terço dos iranianos vivia nas cidades. Hoje, essa relação se inverteu: 70% da população é urbana. A Revolução eliminou parte de sua clientela política, analisa Laylaz.
Sensível à perda de contato com os ideais da Revolução e com a vasta maioria pobre e pouco instruída do país, o establishment religioso conservador apoiou, no ano passado, a eleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, um fundamentalista tão fervoroso quanto um leigo pode ser, que prometeu fazer um governo para os pobres. Subsídios para comida e gasolina, aumentos para os aposentados, atenção às zonas rurais empobrecidas são o fio condutor de seu governo.
O populismo de Ahmadinejad, combinado com um recrudescimento do zelo religioso e do controle social, com a polícia de volta às ruas para fiscalizar o cumprimento dos códigos de vestimenta islâmicos, resolve um problema do regime. Mas tende a criar outro.
A estrutura do poder iraniano não é vertical, ao contrário do que sugere a existência de um líder espiritual supremo. “O poder é horizontal e multipolar”, observa um diplomata ocidental há três anos no Irã. Está distribuído entre os cleros conservador e reformista e os tecnocratas. E há a influência dos bazaris. Alienar reformistas, tecnocratas, bazaris e a classe média poderia ser um erro fatal para o regime, concordam vários analistas.
É aqui que entra o programa nuclear iraniano. Não por acaso, ele é insistentemente comparado, pelo regime, com a nacionalização do petróleo de 1951. Essa é, na história recente do país, a referência de um ato do governo que uniu os iranianos, que lhes deu o sentimento de nação, por cima das diferenças sociais.
“A psique iraniana é fundamentalmente anticolonial. Tudo o que é estrangeiro é ruim”, diz Mahmoud Sariolghalam, professor de relações internacionais na Universidade Shahid Beheshti. “A questão nuclear desempenha um papel unificador. O iraniano médio tem uma mente imperial. Quanto mais poder para o Irã, melhor. É isso que a conquista nuclear representa, subjetivamente, para ele.”
As ameaças dos Estados Unidos – ou, numa versão mais imprecisa, do Ocidente cristão e judaico – de esmagar o Irã se insistir no seu intento conferem ao programa um misticismo adicional: a glória do martírio frente à opressão.
Elas remetem a Hussein, que com 72 homens se dirigiu no ano 680 para a morte certa, frente a um número muito superior de soldados da dinastia omíada, em Kerbala, hoje um centro de peregrinação xiita no Iraque.
“Os xiitas são um povo sentimental e pisado, com ares de senhorito: não tem dinheiro, mas é livre”, diz a professora Najmeh Shobeiri.
Ao lado desse apelo sentimental e popular, o programa nuclear reaviva nos iranianos o seu arraigado orgulho nacional, que tem, por sua vez, uma forte conotação religiosa, sintetizada na identidade dos persas xiitas.
Num país ocidental, onde os valores da modernidade se sobrepõem aos da história e da religião, seria um exagero observar tudo isso e o que segue. Na Ásia em geral e no Irã em particular, não é.
O que o regime iraniano está tentando, por meio do programa nuclear, é impregnar-se da mística nacionalista e religiosa sintetizada no destino trágico e heróico de Hussein, o neto do profeta, marido de uma princesa persa. Para isso, conta com a inestimável ajuda do presidente George W. Bush.
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