Moradores da Alemanha vão a Teerã se inscrever em comitê ‘prontos para tudo’ para defender os muçulmanos
TEERÃ – Eles cresceram e viveram na Alemanha toda a vida. Na verdade, ele apenas nasceu em Teerã e ela, num povoado perto de Ancara, por capricho de seus respectivos pais iranianos e turcos. Fazia 23 anos que ele não vinha ao Irã. Ela veio pela primeira vez. O casal, na faixa dos 40 e poucos anos, está em férias. As duas filhas, a maior de 19 anos, a menor de 14, ficaram em casa, num vilarejo perto de Colônia, sob os cuidados dos avós, que vivem ali também.
Do ponto de vista material, a família tem uma vida confortável na Alemanha. Ele trabalha como autônomo, instalando equipamentos eletrônicos. Ela é empregada numa indústria automecânica, como inspetora de segurança. Tem curso técnico de nível médio. Ele fazia medicina na Alemanha, quando interrompeu os estudos, no início da década de 80, para vir defender o seu país, na guerra contra o Iraque apoiado pelos Estados Unidos e outras potências ocidentais, que desejavam conter o fundamentalismo iraniano.
Foi a sua primeira experiência com a disposição de morrer por seu país. Mais de 20 anos depois, o Irã o atrai de volta, desta vez casado e pai de duas filhas adolescentes. No início da tarde de ontem, o casal entrou no stand do Comitê de Promoção dos Mártires do Movimento Global Islâmico, montado no interior da antiga embaixada dos Estados Unidos em Teerã. Famoso pela crise dos reféns americanos de 1979, um dos momentos mais emblemáticos da Revolução Islâmica, o prédio, apelidado de Laneh Djasusan, ou Ninho de Espiões, agora abriga exposições de ideologia iraniana, como a que está em cartaz agora, dedicada aos palestinos.
O casal não chegou aqui por acaso. Ao contrário, sua entrada no stand é uma atitude refletida, precedida por anos de conversas. Os dois se sentam à mesa colocada à frente do stand. Ao seu lado, um cartaz cheio de fotos celebra: “Saudação aos corpos despedaçados, oh buscadores do martírio; 55 palestinos buscadores do martírio infligem 1.500 baixas sionistas.”
Sacam canetas e preenchem, ajudados por um funcionário, suas fichas de inscrição. O marido está alegre. Seus gestos são naturais. A mulher está tensa. Muitos pensamentos parecem cruzar sua mente, quando o repórter do Estado os começa a bombardear de perguntas.
Por que decidiram ser voluntários ao martírio? “Eu amo a vida”, começa o marido, que, como a mulher, fala alemão fluente. “Há tudo de bom: água, flores, mulheres bonitas. Mas, a que preço?” A mulher explica: “Quando vemos a situação dos outros muçulmanos, não podemos fechar os olhos. São minha família. Então, quero lutar. Deus nos deu tudo para usufruir. Mas nem todos podem usufruir. E não posso pensar só em mim.”
E como essa visão altruísta se converteu numa opção por um atentado suicida? “No caso dele, a juventude já teve uma ligação direta com a guerra”, diz a mulher. “Para mim, isso veio gradualmente, com doutrina, com ideologia. Estudei muito sobre o sionismo.”
A conversa se atém a aspectos práticos. Em que implica exatamente a sua assinatura naqueles papéis? “Escrevemos que estamos prontos para tudo”, responde a mulher. Quer dizer que o Comitê escolherá qual será sua missão? “Eu quero optar”, responde ela. Terminadas as férias, o casal voltará para a Alemanha, e aguardará um contato do Comitê.
E suas filhas já sabem dos planos de seus pais? “Conversamos com elas sobre isso, na linguagem que elas compreendem, na idade delas”, conta a mãe. E o que elas acharam disso? “Elas simplesmente pensam como nós. Têm formação islâmica. Para os muçulmanos, isso é o correto. Assim como a própria Bíblia diz: ‘Amai ao próximo como a ti mesmo.'”
E o casal imagina que, no futuro, as filhas possam ter a mesma atitude? “Tenho esperança de que elas também pensem como nós”, responde a mulher turca, que nasceu sunita e se converteu à corrente xiita, para se casar com seu marido iraniano. “Somos todos muçulmanos: irmãos e irmãs.”
O repórter provoca o homem: o que o atrai no paraíso, as 72 virgens? Ele adota uma linha lógica. “Há duas opções. Ou o paraíso existe ou não existe. Segundo nossa religião, devemos ser puros, não mentir, não deitar com uma mulher sem nos casar com ela. Assim, vivemos bem neste mundo. Se o paraíso não existir, não perdemos nada.”
A mulher continua: “Não temos nenhum problema com judeus nem com cristãos fiéis. Isso está escrito no Alcorão. O sionismo é outra coisa. Não é religião.”
E um menino judeu em um ônibus em Tel-Aviv, que pode ser explodido a qualquer momento por um “mártir” como eles? Tem culpa pelo sionismo, ou pela ocupação dos territórios palestinos? “E os meninos palestinos? Também não têm direito de viver?”, rebatem os dois ao mesmo tempo. “Quem está errado? Quem ocupou primeiro a terra de quem?”
E em que explodir-se vai resolver o problema? “O que você propõe, então?”, pergunta a mulher. “Ficar quieto? Escrever um livro? Não adianta nada. Temos que fazer alguma coisa.” O repórter questiona se esse é o melhor caminho, do ponto de vista político. “Você acha que o Hamas caiu do céu?”, pergunta o homem, referindo-se ao grupo radical islâmico que mais explode homens e mulheres-bomba na Palestina, e que venceu as eleições parlamentares de janeiro. “A maioria dos palestinos votou nele, porque não vê outra saída.”
Do plano político, a conversa salta abruptamente para um plano pessoal. “Não somos nenhuns bárbaros”, diz a mulher. “Tudo o que pedimos é: nos deixem em paz. Na Alemanha, me perguntam na rua por que estou usando este véu. Eu nunca perguntei a ninguém por que traz uma cruz no peito. Somos minoria lá.”
O homem intervém: “A polícia alemã protege as sinagogas, mas não as mesquitas. Na TV alemã, só se fala em Holocausto, ninguém fala dos mortos na Palestina.” Ele conclui, levantando-se: “Também temos sentimentos. Também temos filhos.”
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