Versões de Delúbio e Valério são sob medida para tirar caráter de crime comum
Cuidadosamente ensaiadas e articuladas, as “confissões” do empresário Marcos Valério Fernandes de Souza e do tesoureiro licenciado do PT Delúbio Soares foram feitas sob medida para: 1) afastar da esfera do crime comum para a do crime eleitoral os eventuais delitos cometidos; 2) mesmo na esfera do crime eleitoral, diluir os benefícios produzidos pelas irregularidades para um universo genérico de candidatos, conduzindo as apurações para uma vasta rede e tornando virtualmente impossível a comprovação.
Nas versões de Delúbio e de Valério, repetidas com pequenas variações, na sua essência, ao procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, e ao Jornal Nacional, empréstimos do empresário ao PT financiaram campanhas do partido sem passarem por suas contabilidades. Com isso, não haveria crimes previstos no Código Penal, que costumam dar cadeia, como corrupção, desvio de dinheiro público e formação de quadrilha para cometer esses crimes. Poderia haver crime contra a ordem tributária, descrito em legislação especial, mas que ainda precisaria ser comprovado, e, em tese, pode ser contornado com a retificação de declarações ao Fisco.
A legislação eleitoral prevê cadeia de até cinco anos para crime de falsidade ideológica, como é o caso de omitir informação obrigatória ou prestar declaração falsa. Os especialistas em direito eleitoral ouvidos pelo Estado, no entanto, não se lembram de nenhum caso em que alguém tenha sido preso por isso. E aqui parece residir a aposta contida na versão: a notória
frouxidão, pelo menos na prática, da lei eleitoral.
Um mandato eletivo pode até ser impugnado por irregularidade na prestação de contas. Mas, para isso, é preciso encontrar indícios e entrar com ação no máximo 15 dias depois da diplomação, que ocorre um mês depois da eleição. Portanto, mesmo que houvesse como comprovar que algum candidato foi beneficiado pelo caixa 2 do PT, agora seria tarde demais para ir por esse caminho.
A Justiça eleitoral tem três semanas para julgar as prestações de contas individuais de cada candidato numa eleição. É o prazo legal que transcorre da eleição até oito dias antes da diplomação. Em 2004, por exemplo, o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo teve de julgar as contas dos 2.500 candidatos da capital. Para isso, contou com uma equipe de dez especialistas e requisitou mais alguns no Tribunal de Contas.
“O prazo é curtíssimo”, diz o presidente do TRE-SP, desembargador Alvaro Lazzarini. “Esse é o gargalo”. Para Lazzarini, “a prestação de contas é inane, porque a Justiça Eleitoral só fica no aspecto formal”. Além disso, “mesmo que uma conta não seja aprovada, ou seja aprovada com ressalva, não acontece nada com o partido ou com o candidato”.
Para complicar – como se fosse preciso -, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) baixou resolução limitando o prazo para entrar com ação de cassação de mandato a cinco dias depois do “conhecimento do fato”. A medida é criticada pelo desembargador: “Prazo tem que ser fixado em lei.”
O pedido de cassação do registro do PT é uma opção menos plausível ainda, na opinião do advogado Torquato Jardim, ex-ministro do TSE. “Pela lei dos partidos políticos, só se cassa o registro se houver prova objetiva e formal da falta de prestação de contas”, analisa o especialista. “Se o dinheiro nunca entrou no caixa do partido, não há prestação indevida.”
Por isso que Delúbio, orientado pelo advogado Arnaldo Malheiros Filho, cujo pai é um dos maiores especialistas em direito eleitoral, teve o cuidado de declarar que distribuiu, “como pessoa física”, o dinheiro advindo dos empréstimos para as campanhas individuais de candidatos do partido.
Restaria, aqui, um longo percurso, para provar que o candidato A ou B teve a campanha beneficiada com esse dinheiro. Com base na declaração de Delúbio, o Ministério Público pode iniciar investigações de gastos de campanhas específicas.
“Falsidade ideológica requer prova”, observa um especialista em direito eleitoral que tem petistas entre os seus clientes. “Mesmo que seja o tesoureiro, atingir pessoas eleitas afirmando pura e simplesmente que teve caixa 2, sem provas, é complicado.” Um segundo advogado de petistas ouvido pelo Estado também está confiante.
Já para Torquato, a versão denota “um grande erro”, já que a lei permite que os partidos recebam doações em volumes ilimitados. São apenas as doações a candidatos individuais que estão restritas a 10% do rendimento bruto do doador. “Esse dinheiro poderia ter entrado normalmente no caixa do partido”, diz o especialista. “O mais chocante dessa história toda é que eles se colocaram acima do bem e do mal.”