Pela terceira vez me apontavam um fuzil, antes de acabar sendo preso
TSKHINVALI, Ossétia do Sul – Os milicianos e eu entramos no Mercedes de novo e fomos até um grande pátio de uma empresa de terraplanagem, convertida em base dos ossetianos. Havia cerca de dez milicianos lá. Estavam disparando na nossa direção, e os milicianos corriam de um lado para outro, escondendo-se entre os caminhões e tratores. Dois milicianos me levaram de volta para o checkpoint. Fui até o major da poltrona; “Por favor, me deixe caminhar.” Ele chamou um soldado para traduzir, que se apresentou como Volva (abreviação de Vladimir): “Aqui, somos o Exército russo, mas lá existem homens maus. Vão te matar.”
Mal terminou de dizer isso, e uma velha perua Opel cruzou o checkpoint, com dois milicianos ossétios dentro. Quando me viram, pararam o carro, e o passageiro veio correndo na minha direção, gritando e apontando o fuzil para mim. Vociferando, ele apertou a boca do fuzil contra minha garganta. Instintivamente, segurei o cano, tentando aliviar a pressão. Era a terceira vez que me apontavam um fuzil no mesmo dia. Os russos gritavam várias coisas, entre elas: “Brazilia, Brazilia.” O ossétio deu meia-volta, entrou no carro e foi embora. “Relaxe”, disse Volva. “Pensaram que você era georgiano.”
Eram 18h15. Um comboio de blindados e caminhões russos parou no checkpoint. Assim como os milicianos, vinha de Gori, para onde eu queria ir. “Eles vão te levar para Gori”, disse o major do tanque. “Spassiba”, agradeci. Subi no blindado da frente. “Dokument”, gritou o major que o comandava. Mostrei o passaporte e a credencial . Em vez de dar meia-volta em direção a Gori, o comboio atravessou o checkpoint. Eu estava voltando para Tskhinvali. No caminho, um capitão requisitou meu bloco de anotações, cuja espiral despontava do bolso da calça cargo. Compreendi que não estava ganhando uma carona. Estava preso.
Quando chegamos a Tskhinvali, me mandaram entrar no blindado. Paramos numa base do Exército. Os militares descarregaram o butim: metralhadoras, fuzis e munição, abandonados pelo Exército georgiano que batia em retirada. Um major me disse que estava encarregado de mim e requisitou minha câmera e documentos. O capitão lhe entregou meu bloco. Fomos num jipe para o qualtel-general russo em Tskhinvali. No caminho, o major me perguntou se eu tinha visto a infantaria do Exército americano no caminho de Tbilisi a Gori. A pergunta revelava uma ignorância atroz, para um oficial. Em seguida, perguntou se eu tinha visto forças especiais americanas. Voltei a dizer que não. “Os americanos só sabem fazer hambúrguer e refrigerante. O Exército deles é uma merda”, me disse ele. “Se Bush vier a Tbilisi, o Exército russo vai foder com ele.”
Depois de meia-hora de espera no jipe, levaram-me para uma tenda com longos bancos de madeira e uma mesa sobre a qual estavam um grande mapa militar da região, cheio de anotações de coordenadas. Um coronel, um tenente-coronel, um capitão e um tenente que seria o intérprete me esperavam. Minhas coisas estavam espalhadas sobre o mapa. Fui interrogado durante três horas. Mandaram-me explicar cada foto na minha câmara e cada anotação que lhes chamava a atenção no meu bloco. Para os militares russos, não fazia sentido que alguém cruzasse a linha divisória do conflito. Ou você está de um lado, ou do outro. Perguntaram-se por quantos postos de controle do Exército georgiano eu tinha passado, e se havia forças terrestres da Geórgia em Gori. Não havia nada, respondi. Eles tinham batido em retirada.
Na terceira hora, deixei de ser tratado como suspeito para me tornar apenas um transtorno. “Você se arriscou demais”, me disseram eles, enquanto me ofereciam chá, bolachas e geléia. “Você é o único jornalista não-russo na Ossétia do Sul. Todos os que estão aqui vieram conosco, pela Ossétia do Norte.” Eles queriam que eu fosse para a Rússia. Insisti em voltar para a Geórgia. “Você é livre”, me disseram. “Vamos ajudá-lo a cruzar para Gori.” Devolveram minhas coisas e finalmente me deixaram ligar meu celular.
Dormi no alojamento dos oficiais. Passei a manhã seguinte com o capitão Vladimir Ivanov, responsável pela imprensa, percorrendo Tskhinvali num jipe. Como o miliciano ossétio Andrei na véspera, ele queria que eu visse a destruição. Mostrou-me os estilhaços de morteiros usados pelos georgianos, e soldados russos usando detectores em busca de minas. Saí de Tskhinvali ao meio-dia, num comboio de três veículos blindados, liderado por um jipe. Havia dez jornalistas russos também.
Uma hora e meia depois, paramos numa grande base perto do local do checkpoint que eu cruzara na manhã anterior. Havia dezenas de tanques, blindados e caminhões. Mandaram-me entrar no blindado. O comboio seguiu, e pela janela minúscula do veículo vi que estávamos atravessando Gori, inteiramente deserta. Os russos a haviam tomado e empurrado a linha divisória uns 10 km para a frente. O comboio parou. Abriram a escotilha. “Brazilian”, gritaram. Desci do blindado e cruzei caminhando a linha divisória. Peguei carona num carro da BBC, que me trouxe para Tbilisi.
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