Há mais militares russos e milicianos do que civis em Tskhinvali; ossétios começam o acerto de contas com os georgianos, queimando suas casas
TSKHINVALI, Ossétia do Sul – Quando uma guerra acaba, a primeira providência é recolher os corpos. Na estrada que leva a Tskhinvali, o corpo de um homem está debaixo de uma van tombada; o de outro está caído de barriga para cima, os braços abertos, na frente de um posto de gasolina. O trânsito intenso de tanques e blindados russos, assim como os disparos intermitentes de artilharia e fuzis confirmam que a guerra continua, indiferente aos anúncios de cessar-fogo e às iniciativas de negociações.
Em Tskhinvali, capital da província separatista da Ossétia do Sul, há muito mais militares russos e milicianos ossétios do que civis. Dos cerca de 30 mil moradores, estima-se que tenham restado de 3 a 4 mil. Os militares russos mobilizaram 30 mil militares na Ossétia do Sul, que lhes serve de base também para operações no interior da Geórgia. O Estado percorreu as principais ruas da cidade ontem de manhã, e contou 50 civis – a maioria idosos. Não se vêem crianças em Tskhinvali. Todos os homens em idade militar são milicianos.
Os militares russos e seus aliados ossétios, em contrapartida, estão por toda parte, esses últimos trafegando em caminhonetes, jipes e veículos comuns, em geral “confiscados” da população. Assim como os russos, eles trazem amarrado um pedaço de pano branco, símbolo de sua missão autoconferida de “forças de paz”. A maioria dos ossétios fugiu para a Ossétia do Norte, que faz parte da Rússia, enquanto os georgianos étnicos que vivem na província foram para a Geórgia.
Não faltavam motivos. Em vários vilarejos ao longo da estrada há casas pegando fogo: resultado do acerto de contas dos ossétios com os georgianos, castigados pelo fato de o Exército da Geórgia ter devastado a província. Na beira da estrada, bicicletas de crianças, brinquedos, automóveis esmagados contam a história da abrupta invasão do Exército georgiano, que há uma semana percorreu essa estrada com blindados, varrendo tudo o que encontrava pela frente. Assim como na capital, na estrada também só se vêem alguns idosos caminhando com o olhar perdido.
Mas a entrada em Tskhinvali – o destino dos blindados georgianos – guarda a imagem mais chocante. Nada permaneceu intacto. Cada casa e prédio ou foi destelhado ou teve uma parede demolida, quando não as duas coisas. O cenário de terra arrasada também testemunha a reação brutal das Forças Armadas russas, deslocadas no dia seguinte para esmagar a ofensiva georgiana. No principal cruzamento da cidade, dois tanques georgianos viraram sucata. Noutra esquina, um tanque teve um pedaço arrancado, como se fosse de brinquedo.
A cidade não tem eletricidade – nem, por conseqüência, água corrente. Só os militares russos – instalados em numerosas bases – contam com esses dois recursos: a água que trouxeram e geradores elétricos. Os celulares funcionam precariamente: parte das antenas foi destruída.
“Foi horrível”, descreve o miliciano ossétio Andrei, de 22 anos, estudante de inglês na Universidade de Tskhinvali. “Não tenho palavras para descrever.” Ao lado do quartel-general ossétio – pouco danificado -, um jardim de infância foi inteiramente arrasado pelos disparos de artilharia. Andrei recorda que os conflitos começaram no dia 2. “N dia 8 eles invadiram com toda a força. Tentamos fazê-los recuar. No dia 9, vieram de novo. Aí os rechaçamos”, conclui o soldado, sem mencionar a participação russa na vitória sobre os georgianos. “A Ossétia do Sul quer ser parte da Rússia, porque ela nos ajuda”, explicou Andrei. Esse desejo é antigo, e certamente a invasão georgiana não contribuiu para aplacá-lo.
O hospital foi destruído, ao lado dos outros prédios públicos, como a sede do governo local, do Parlamento e do “Ministério das Relações Exteriores” (nenhum país reconhece a independência da Ossétia do Sul, declarada em 1992, depois de um breve conflito armado). Os feridos são atendidos num acampamento montado pelo Ministério de Situações Extraordinárias, da Rússia, conhecido pela sigla MC, em letras cirílicas. É também nas tendas do MC que os civis encontram água potável, pão, sopa e ração militar.
A enfermeira Evelina Kokaeva, que trabalha no hospital, conta que, nos primeiros dias, os feridos eram operados no subterrâneo do prédio. “Quatro jovens soldados russos morreram e chorei como se fosse a mãe deles”, recorda Evelina.
“Agora a grande Rússia vê quem é culpado”, disse Vladimir Kulumbegov, um pedreiro de 47 anos. “Os georgianos não conseguem ver que foram eles que começaram a guerra. Eles fizeram coisas muito más. Claro que se estivéssemos no lugar deles não faríamos o mesmo.” O ataque de uma semana atrás reforçou nos ossétios uma auto-imagem de vítimas que precisam de proteção – que a Rússia está pronta para suprir.
Caminhando em frente à praça principal da cidade, cuja estátua do grande poeta ossétio, Kosta Hitagurov, teve o rosto arrancado pelos morteiros, Evelina pediu: “Quero dizer às mães georgianas: vocês deviam alertar seu governo e seu presidente que eles têm de parar de fazer essas coisas contra seu próprio povo.”
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