Tarso Genro: ‘A liberdade não é ilimitada’

Em seu livro ‘Esquerda em Processo’, Tarso defende democracia direta e regulação da cultura e avalia o papel do PT no poder


BRASÍLIA – Em breve chega às livrarias Esquerda em Processo, o novo livro do ministro da Educação, Tarso Genro, um dos principais mentores ideológicos do PT. Nele, o ministro procura atualizar o conceito de socialismo à luz dos acontecimentos das últimas décadas, e faz reflexões sobre o PT no poder. Tarso defende propostas polêmicas, como a democracia direta, a “indução” do 
consumo e da produção pelo Estado e a regulação nas esferas da cultura, do modo de vida e até da moral.

Escrito antes da polêmica em torno do projeto de criação do Conselho Federal de Jornalismo, o livro propõe também um conselho para regular as atividades dos meios de comunicação, de modo a “elevar seus padrões éticos e culturais”. Segundo o ministro, no entanto, trata-se de uma “hipótese” apenas, que não deve ameaçar a liberdade de imprensa. Em entrevista ao Estado, na tarde de sexta-feira, Tarso Genro esmiuçou essas e outras idéias.

O sr. fala, em seu livro, da “recriação de um projeto humanista verdadeiramente democrático e por isso socialista”. Em que sentido democracia e socialismo são sinônimos?

Hoje, não são mais. A experiência daquilo que Norberto Bobbio chama de “comunismo histórico” dissolveu essa relação entre democracia e socialismo. Portanto, para retomarmos este binômio, temos de compreender o socialismo hoje não como um projeto de Estado nem de um modo de produção, mas como uma idéia reguladora de uma situação de pouca igualdade para mais igualdade, de um Estado separado para um Estado mais próximo da sociedade, de afirmação plena dos direitos humanos e suas conseqüências no plano social. Portanto a questão do socialismo hoje está profundamente vinculada à questão democrática.

O sr. diz que, sem a regulação plena, corre-se o risco do totalitarismo. Não é o contrário? A regulação da cultura, do modo de vida, da moral, como o senhor menciona, não é um caminho para o totalitarismo?

Quando eu falo que a questão da regulação é uma questão-chave para a democracia, sustento precisamente que a regulação é a regulação da liberdade, da liberdade dos indivíduos e da liberdade dos grupos sociais. E sustento também uma coisa óbvia: que a liberdade não é ilimitada. Por exemplo, a apologia do crime não pode ser aceita num Estado democrático. O exercício do monopólio, por exemplo, da informação, não pode ser aceito em defesa da liberdade da iniciativa privada, que deve ser uma possibilidade de todos. A visão de regulação que tenho é a da manutenção da pluralidade, da diversidade e inclusive da desigualdade acordada na sociedade.

O sr. propõe um conselho para “regrar e vigiar a aplicação de regras que permitam a liberdade de informação, o livre trânsito de opiniões, a obstrução de qualquer monopólio na área, bem como a elevação dos padrões éticos e culturais dos meios de comunicação”. O senhor escreveu isso antes da polêmica sobre o Conselho Federal de Jornalismo?

Antes.

Então foi o senhor que aconselhou o presidente Lula?

Não. Na verdade, aquela informação que está contida no livro não é uma proposta. É uma hipótese, porque naquele texto o que se discute é como seria o Estado Democrático de Direito dentro de um regime republicano socialista. É uma hipótese de instituições políticas do socialismo numa visão

idealizada, abrigada numa discussão meramente teórica. Não é uma proposta de regulação da liberdade de informação aplicável hoje, na minha opinião. Eu não ousaria fazer uma proposta sobre questões de que não entendo.

O senhor não tem uma opinião formada sobre a proposta tal qual foi formulada?

Sou a favor de um conselho – não me refiro especificamente a esta proposta – que possa fiscalizar a atividade profissional exclusivamente com o sentido de garantir a liberdade de informação e o exercício livre e pleno da atividade profissional. Qualquer dispositivo que eventualmente vier a cercear a liberdade, seja de um jornalista ou de um formador de opinião, seria absolutamente incompatível com a democracia e não deveria ser aceito.

Em várias passagens do livro o sr. sugere que o Estado induza o consumo e a produção. A quem cabe decidir, já que há tantos interesses na sociedade, para que lado o consumo e a produção devem ser induzidos?

O Estado sempre intervém na sociedade. Não existe nenhum Estado que não seja interventor. Ou ele intervém através de políticas de Estado ou através de normas técnicas falsamente despolitizadas. As três principais formas de intervenção do Estado na economia são: taxas de juros, o aporte de infra-estrutura, que o Estado arbitra onde fazer, e as encomendas que ele faz do setor privado. O Estado ou faz isso através de um poder político legitimado ou através de órgãos técnicos falsamente despolitizados. Por exemplo, o Copom (Comitê de Política Monetária) é um órgão puramente técnico? Obviamente que não. Por dentro de uma decisão do Copom passam visões de como o País deve ser, qual a influência que a política monetária tem no desenvolvimento econômico, quais as relações que devem ser estabelecidas entre as taxas de juros nacionais e as vigentes globalmente, isso tem a ver com a dívida externa, com a estabilidade macroeconômica do

País. Então, essa questão de o Estado intervir ou não na economia, para mim, é falsa. Importante é deduzir qual a natureza dessa intervenção. Se é para sufocar a energia da sociedade, para despolitizar e submeter a sociedade civil, ou se é uma intervenção regulatória, para promover equilíbrios e desenvolvimento num ou noutro sentido.

O sr. defende fechar a economia para garantir superávit na balança comercial, que o País já tem com uma economia aberta. Qual o benefício em fechá-la?

É um equívoco de interpretação que eu defenda o fechamento da economia. Uso o termo “fechar” a economia entre aspas. O País tem uma energia tão grande para defender seu desenvolvimento econômico e sua integração na globalização como têm, por exemplo, o Japão e os Estados Unidos. Que qualquer política externa seja sempre fundada nos interesses da nação. Obviamente isso exige

concessões, o reconhecimento de relações de interdependência, de cooperação. Nunca tive, nem nos meus momentos mais duros de esquerdista, a posição de fechamento.

O senhor diz que o Brasil deve sair da globalização financeira, que o senhor distingue da mundialização da economia. Como fazer isso?

Gerando um processo de acumulação pública e privada que gradualmente nos liberte da tutela da dívida e, portanto, do terror do choque externo. Este caminho do governo brasileiro, esse processo de acumulação atual por meio de superávit primário – não vou discutir a questão dos juros nem o nível do superávit, porque, como ministro da Educação, não me compete –, para ter confiabilidade para transitar para uma relação de não-subordinação ao financiamento da dívida, acho que é chave para um projeto de nação. A mundialização da economia e a globalização financeira são períodos

distintos. No momento da globalização financeira, as agências privadas de influência internacional tutelam o manejo da dívida, através da teoria do risco, da mobilização de capitais numa ou noutra direção, fazendo que o direito interno dos países se amolde a isso para que não sejam sucateados.

O senhor defende a democracia direta. Ela não provoca instabilidade?

Se for regrada, não. A democracia direta vem ascendendo desde o século passado através de diversos mecanismos, que hoje são referendados nas Constituições: o plebiscito, a consulta, o referendo são formas de democracia direta. É um processo inexorável. Agora, democracia direta não

pode tirar a estabilidade, a previsibilidade e a temporalidade da democracia representativa. Isso não é difícil de fazer. Já tem países que fazem freqüentemente…

A Venezuela…

Não. A Suíça. Por que a Venezuela? Qual é o preconceito contra a democracia direta?

O que o sr. acha da experiência de Hugo Chávez?

Na minha opinião, não é democracia direta. O que existe lá é um combate político onde se utilizaram mecanismos de consulta popular para tentar dar estabilidade a um novo Estado de Direito. Imagino que se possa chegar a determinado momento em que a população possa ser consultada sobre se o mandato do presidente da República deve ser de quatro ou de seis anos. E que

eventualmente no terceiro ano a população possa ser consultada se quer eleições daqui a dois ou a seis anos. Obviamente isso é hipótese, um exemplo totalmente abstrato. Agora, que essas formas de democracia direta combinada a democracia representativa já estão em andamento nos países desenvolvidos, é só o óbvio.

Isso pode ser posto em prática hoje no Brasil?

Não. O momento que estamos vivendo hoje é de consolidação da democracia representativa, do Estado Democrático de Direito, e de realização de experiências de democracia direta no âmbito da cidade, principalmente…

Como o orçamento participativo…

…Como fizemos em algumas cidades. São experiências altamente positivas e que a olhos vistos não proporcionaram nenhum regime arbitrário, nenhuma intolerância nas relações políticas.

Conselhos não são facilmente aparelháveis? Em Cuba, onde já têm uma história longa, o partido os controla, na prática.

Qualquer conselho pode ser aparelhável em qualquer regime. O que se tem de ter é uma legislação estável e democrática que preveja como os conselhos se renovam e quais relações eles têm com o Estado e com o projeto democrático. No caso de Cuba, no caso da experiência soviética, vamos falar de forma mais ampla, os conselhos são meras estruturas rituais do partido e do Estado. Na

verdade, não são conselhos. São aparatos do Estado. Nessas sociedades não tem sociedade civil. E, não tendo essa distinção entre sociedade civil e Estado, a democracia direta é impossível. É muito diferente da democracia direta do recall nos Estados Unidos, dos referendos na Suíça, dos plebiscitos na Itália, que se dão por dentro da democracia.

Ao defender a separação entre partido e Estado e não sustentar militantes partidários com salários do Estado, o sr. responde a dois temores que suas teorias poderiam suscitar em pessoas que vêem fortes indícios de aparelhamento na prática do PT.

A questão do aparelhamento, que aparece, estranhamente, só contra o PT, está relacionada com todos os partidos. A vida do partido moderno é uma vida de estruturação internamente, com estruturas de aparelho, ou seja, do poder, e na relação com o Estado isso se complementa. Desconheço qualquer partido que não tenha estrutura de aparelho interno e não tenha pelo menos tentado ou em parte aparelhado setores do Estado. Não acho que essa luta contra o aparelhamento seja fácil. Agora, acho engraçado porque isso vem justamente de quem aparelhou o Estado durante oito anos, que é o PSDB, de quem eternamente aparelhou o Estado brasileiro, que são as oligarquias de outros partidos que não vou mencionar o nome.

Como o senhor tem aplicado essas idéias expressas em seu livro na educação?

Eu não ponho em prática no ministério as minhas idéias pessoais. Aqui no MEC eu estou comprometido com um programa de governo, que é plural, filosoficamente laico e profundamente democrático. Acho que não cabe ao ministro aplicar suas idéias.

O livro é uma boa oportunidade de reconciliação ideológica com sua filha, Luciana Genro (deputada expulsa do PT)?

 

A reconciliação ideológica é uma tarefa um pouco difícil, entre gerações.

 

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