Querência, onde os reis da soja e do algodão se instalaram, vive corrida de terras e desmates.
QUERÊNCIA – O Vale do Araguaia tem uma ecologia delicada. Com sua fauna variada, com sua bacia importante, com suas árvores altas de tronco fino, que o Ibama classifica de cerrado, o mapa Radam Brasil, do Exército, chama de floresta e a Fema de Mato Grosso considera mata de transição.
É nessa paisagem que o intento do governador Blairo Maggi de promover um desenvolvimento agressivo mas ambientalmente sustentável do agronegócio é colocado à prova. O epicentro é Querência, um município do tamanho do Estado de Sergipe, e com 40% de seu território dentro do Parque Nacional do Xingu.
Os motivos são simples: solo bom, topografia plana, regime de chuvas adequado. E terra barata – pelo menos inicialmente. Em março de 2002, o hectare custava R$ 300. Hoje, está na casa de R$ 2.500 – e praticamente não se encontram fazendas para vender na região.
Nesse ínterim, ocorreram três coisas. A desvalorização do real gerou enorme ganho para o produtor, que comprou insumo com o dólar a R$ 1,90 e vendeu a soja pela cotação de R$ 3,80. O Grupo Maggi comprou, em meados do ano passado, três fazendas contíguas, somando 83 mil hectares. E Blairo Maggi se elegeu governador.
Neste ano, o grupo pretende plantar 10 mil hectares na fazenda. No ano seguinte, mais dez, e assim sucessivamente, até alcançar 40 mil hectares. Toda essa área, segundo Ocimar Villela, gerente de Meio Ambiente do grupo, já tinha sido desmatada, para pastagem.
Aqui, há um problema. A lei exige estudo e relatório de impacto ambiental (EIA-Rima), com audiências públicas, para projetos de “atividades modificadoras do meio ambiente” em áreas acima de mil hectares. A Fema-MT dispensou o Grupo Maggi de EIA-Rima. “Nunca ouvi falar de EIA-Rima para mudar de pastagem para soja”, rejeita o governador.
De fato, no Brasil, não se costuma exigir isso. Como não se costuma aplicar as leis ambientais, até por falta de tecnologia e de fiscais. Em Mato Grosso, no entanto, na gestão passada, a Fema exigiu EIA-Rima, com audiência pública, do Grupo Camargo Corrêa, que pretendia plantar 12 mil hectares de algodão na região de Nortelândia, em 2001. Preocupados com a dispersão de pesticidas na cabeceira do Rio Paraguai, os secretários de Saúde dos municípios da região fizeram abaixo-assinado contra o empreendimento, que não foi autorizado.
O Estado consultou dois procuradores do meio ambiente, Antônio Herman Benjamin, de São Paulo, e Guiomar Borges, de Mato Grosso. Ambos acham que, no caso da conversão de 10 mil hectares de pasto em lavoura de soja, seria recomendável EIA-Rima com audiência pública.
A instalação do Grupo Maggi na região teve conseqüências até políticas. O prefeito de Querência, Denir Perin, que era do PMDB e apoiava o governador Dante de Oliveira, candidato à reeleição, migrou para o PPS de Blairo Maggi, e aderiu à sua campanha.
“O empresário agrícola vem por causa do Grupo Maggi”, constata Wilson Fucks, dono da única imobiliária de Querência, com 10 mil habitantes e 600 tratores registrados, 4 revendas autorizadas, 6 lojas de implementos agrícolas e armazéns dos gigantes Bunge e Cargill.
Antes do rei da soja, já se instalara na região o prefeito de Acreúna (GO), Wander de Souza – o rei do algodão. Wander tem em São Félix do Araguaia, Alto Boa Vista e Querência nove propriedades, que somam 140 mil hectares e nas quais está plantando arroz, algodão e soja. Além de maior produtor mundial do algodão, Wander é parceiro comercial do vice-presidente José Alencar. Ele fornece, há oito anos, pluma de algodão para a Coteminas, a maior indústria têxtil do Brasil, pertencente a Alencar. A presença de Maggi e de Wander criou uma mística irresistível sobre Querência e o Vale do Araguaia.
Querência tem 14 serrarias, 4 laminadoras e 1 fábrica de compensados, para dar conta das árvores derrubadas. Embora os madeireiros locais se queixem da qualidade da madeira. A maior parte dela não vai mesmo para as serrarias. É queimada.
Do ano passado para cá, Querência pulou do nono para o primeiro lugar no ranking estadual de focos de calor detectados pelo satélite Noaa-12 no mês de setembro, período de queimada da mata derrubada no ano anterior para o plantio da soja. Dos 16.338 focos registrados pelo satélite em Mato Grosso no mês de setembro, 708 foram em Querência (ver gráfico).
O Estado sobrevoou a área no dia 24 de setembro, quando Querência ardia em 291 focos, somando os detectados por todos os satélites (ver foto de satélite). Por causa da sobreposição, certamente o número real é menor, mas esse dado serve de referência para comparar com o que ocorria exatamente um ano antes: juntos, todos os satélites detectaram apenas 7 focos de calor em Querência no dia 24 de setembro de 2002.
A fazenda dos irmãos Polato, vizinha à de Maggi, era uma das que queimavam. Dos 981 hectares que os quatro irmãos têm juntos, mais de 800 já foram desmatados, contou José Aparecido Polato, de 22 anos. No ano passado, foram derrubados 600 hectares, que era a área que estava sendo queimada no mês passado. O desmatamento avançou até a beira do Rio Darro, que serve de divisa entre as fazendas dos Polato e dos Maggi.
O Estado enviou as fotos da queimada ao diretor de Recursos Florestais da Fema-MT, Rodrigo Justus de Brito, que mandou para a área dois fiscais. Os donos de duas fazendas foram autuados. A Fema aguarda informações do Ibama, sobre se essas duas fazendas já foram autuadas pelo órgão federal. Em caso de reincidência, o valor da multa dobra. Sem isso, ela deve ultrapassar R$ 1,6 milhão.
A lei estadual permite desmatamento de até 50% nas propriedades de áreas consideradas de transição, como essa, segundo a classificação da Fema. Os irmãos Polato foram muito além disso, desmatando praticamente toda a fazenda. “O jogo dos fazendeiros nesta região é abrir tudo e dizer que já estava assim, tentando criar um fato consumado”, analisa Brito. “Não sabem que temos as imagens do ano passado, que podemos comparar com as deste ano.”
O diretor da Fema reconhece que alguns produtores esperavam que, com a eleição de Maggi, o governo de Mato Grosso se tornaria complacente. Uma esperança falsa, garante ele: na atual gestão, a Fema já realizou 329 inspeções e notificações e lavrou 110 autos de infração. Em Querência, foram seis autos de infração este ano. Em 2002, nenhum.