Livres das amarras das licitações, entidades ganham espaço e assumem as tarefas do Estado
Bons tempos aqueles em que reportagem sobre desvio de dinheiro público se fazia com político ladrão, funcionário corrupto e empresário desonesto. Uma vez flagrados, eles protestavam inocência, num gesto quase protocolar, e saíam atrás de um bom advogado. Claro que ainda há muito disso. Mas uma nova modalidade de negócios com o Estado cresce num ritmo assombroso, embaralhando a ética do público e do privado. Trata-se do terceiro setor, que não é empresa nem governo, e vem desenhando uma área cinzenta de intersecção com o Estado.
No rastro da diminuição do Estado, do aperto na competitividade entre as empresas, e do florescimento da chamada sociedade civil no Brasil pós-ditadura, governantes nos três níveis e “donos” de ONGs e fundações bem situadas exploram uma gama infindável de áreas nas quais serviços podem ser contratados sem licitação, justificados pelo “notório saber” e embalados num espírito de “parceria” e “convênio”, e não mais de relação comercial.
Recursos – De acordo com o Instituto Licitus – ONG dedicada a monitorar as contratações públicas –, a União, Estados e municípios adquiriram bens e serviços no valor de R$ 120 bilhões em 2003. A fatia do governo federal equivale a R$ 14,2 bilhões, dos quais R$ 6,9 bilhões, ou 48,8%, contratados sem licitação. E em obediência à lei, o que é uma característica dessas parcerias.
Já o Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) registra em 2003 transferência de R$ 1,386 bilhão do Tesouro federal para instituições privadas sem fins lucrativos. Até 27 de julho, outros R$ 486 milhões já haviam sido repassados.
Pesquisa inédita realizada pelo Centro de Estudos do Terceiro Setor da Fundação Getúlio Vargas, por meio de questionário respondido por mais de 3 mil ONGs de setembro do ano passado até agora, revela que 55% delas se mantêm com recursos públicos. É a soma de 30% que vivem de recursos próprios, públicos e privados; 11% que recebem dinheiro público e privado; 10% com recursos próprios e públicos; e 4%, exclusivamente públicos.
A sinergia crescente entre as ONGs e o governo levou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – recém-fundador de uma ONG – a cunhar o termo “organizações neogovernamentais”. E aflige até mesmo uma parcela do setor. “Não sou contra parceria entre Estado e ONG, mas a ONG deve atuar no âmbito da sociedade civil”, diz Jorge Saavedra Durão, diretor-geral da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong). “Não acho que ONGs tenham vocação para gestão. Podem até realizar projetos em pequena escala, para efeito demonstrativo. Mas não entrar num processo de terceirização do Estado, sobretudo para contornar exigências legais. Pode ser um amplo desvirtuamento das ONGs.”
Braço do Estado – “O problema é quando se junta tudo e fica difícil ver quem faz serviço público e quem não faz”, diz Ana Toni, diretora-executiva da Fundação Ford no Brasil, que administra uma receita anual de US$ 10 milhões para doações a entidades beneficentes brasileiras. “Onde é a linha divisória entre o público ONG e o público governamental? As ONGs viram um braço do Estado.”
Cadastro feito pela Abong com 248 filiadas em 2001 mostra que, nesse grupo de elite – as associadas à Abong são mais bem-estruturadas que a média –, o financiamento público é menos importante do que o proveniente das agências internacionais, responsáveis por 50,61% do orçamento total dessas ONGs. O governo federal entra com 7,50%, os Estados com 5,93% e as prefeituras, com 5,03%. Recursos de empresas respondem por 4,19%; venda de produtos e serviços, por 3,83%; agências multilaterais e bilaterais, por 2,40%; contribuições de associados vêm na lanterninha, com 1,77%.
As agências internacionais, por sua vez, gerem fundos públicos de governos dos países ricos. E isso também preocupa. “O Brasil está ganhando importância nas disputas internacionais”, observa Durão. “Na medida em que os conflitos vão emergindo, é importante que as ONGs tenham menos recursos do exterior.”
O geógrafo Aziz Ab’Sáber, um dos mais conceituados do País, considera “absurdas” as parcerias lançadas pelo Ministério do Meio Ambiente para gestão de áreas de preservação ambiental. “Querem alugar florestas nacionais para ONGs estrangeiras, por 30, 60 anos”, diz Ab’Sáber, do Instituto de
Estudos Avançados da USP. “Vai virar fazenda de quem assumir no começo, e o dia em que o País não concordar, o caso irá para o Tribunal Internacional. É o começo da internacionalização do entorno das florestas nacionais. Daqui a 60 anos, vamos entrar para ver o que nos restou.”
As facetas são múltiplas. “É muito nebuloso o terceiro setor”, atesta a professora Maria Carmelita Yazbek, da pós-graduação em serviço social da PUC-SP. “É difícil separar o joio do trigo.” Carmelita foi vice-presidente do Conselho Nacional de Assistência Social entre 1993 e 94, período em que
iniciou uma “limpeza” no setor, e viu coisas do arco da velha. Associações de criadores de cães pastores, sociedades de tênis, sem falar em escolas, universidades e hospitais invejavelmente rentáveis, foram registrados como entidades beneficentes de assistência social, cujo único benefício se refere ao delas próprias: as isenções tributárias. A professora lembra que “há ONGs impecáveis”. O problema é que “qualquer um cria uma ONG”.
Influência – “Nossa relação entre o público e o privado nunca foi planejada”, analisa Marcos Kisil, do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social. “No governo anterior, a mulher do presidente criou o Comunidade Solidária, uma ONG com todos os ministros de Estado”, critica.
“No atual, o presidente criou o Fome Zero para pôr dinheiro público. Não conseguiu gastar nem a verba do Orçamento e pede dinheiro privado.” Para Kisil, nem uma nem outra iniciativa teve origem na sociedade civil. “Canaliza-se dinheiro público para quem tem influência política.”
A candura dos ideais, a reputação ilibada de muitos dos envolvidos, a imprecisão das fronteiras entre público, privado e estatal, a falta de regulação e fiscalização inibem questionamentos.
As dificuldades já começam nas definições. Freqüentemente, o terceiro setor se define pelo que não é: organizações não-governamentais, público não-estatal, sem fins lucrativos, e por aí vai. Não há um censo do setor. No cadastro da Receita Federal, o item que o captura de forma mais precisa é
o das “Outras Atividades Associativas Não-Relacionadas Anteriormente”, sob o código 9199500 do índice de atividades do IBGE. Em 1991, havia 220 mil estabelecimentos sob essa rubrica. Hoje, são 453.278. Aí entra de tudo, de associação de filatelistas ao Greenpeace – uma das dez organizações estrangeiras cadastradas como tais na Receita. ONG mesmo, aí compreendidas as sociedades civis e as fundações, ninguém sabe ao certo quantas são.
Mas a sua força é visível. Levantamento publicado em 1999 pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), em parceria com a Universidade Johns Hopkins, revelou que as despesas operacionais do conjunto das organizações sem fins lucrativos no Brasil somavam cerca de R$ 10,9 bilhões em 1995, o que equivalia a 1,5% do PIB.
Havia 1,12 milhão de empregos remunerados no setor, ou 2,2% dos postos de trabalho não-agrícolas. De lá para cá, o número de entidades pode ter duplicado. O terceiro setor tem absorvido muitos trabalhadores dispensados dos setores público e privado. “Quando você é demitido, o que vai fazer? Ou monta uma carrocinha de cachorro-quente ou funda uma ONG”, brinca o cientista político Marco Aurélio Nogueira, autor do livro Um Estado para a Sociedade Civil.
Proezas – O terceiro setor em geral e as ONGs em particular contêm um imenso poder de mobilização das energias da sociedade. Há histórias fantásticas, de ONGs grandes e pequenas, famosas e desconhecidas, novas e antigas, que têm realizado proezas notáveis. Algumas estão contadas neste caderno.
“Pilantragem há em todas as áreas da sociedade. Entre as ONGs, representa menos de 10%”,estima a cientista política Simone Coelho, autora de Terceiro Setor: Um Estudo Comparado Brasil-EUA, e que trabalha com a capacitação de ONGs para avaliação de resultados.
É uma estatística difícil. Seja como for, há uma transferência crescente de dinheiro público para esse setor, sem despertar muita atenção do contribuinte. É isso que este primeiro Dossiê Estado pretende fazer.
(Colaborou Bruno Paes Manso)