Entre o Exército e o exílio no Brasil, Karina escolhe o primeiro

Em entrevista exclusiva ao ‘Estado’, a filha mais velha de Gutiérrez descreve a difícil decisão de permanecer sozinha no Equador

 

QUITO – Um vento frio corta o imenso campo de treinamento da Escola Superior Militar Eloy Alfaro, nas redondezas de Quito. Alinhados geometricamente, os cadetes ensaiam o passo do ganso de 90 graus, um resquício da formação prussiana. Dois oficiais se aproximam do grupo e chamam a cadete Gutiérrez. Empunhando sua baioneta de parada militar, ela vem caminhando entre os dois. Na sala de espera, o coronel Maldonado explica ao repórter: “Tratamos a cadete Gutiérrez como qualquer um. Aqui ela tem os mesmos direitos que os outros.”

Karina Ximena entra no salão com um sorriso tímido. Com a aprovação do comando da escola, e sob a condição de não fazer comentários políticos, ela concorda em conceder uma entrevista exclusiva ao Estado. Aos 20 anos, Karina teve de tomar uma decisão difícil: acompanhar o pai, a mãe e a irmã de 15 anos no asilo político no Brasil ou seguir sua vida, sozinha, em Quito. Decidiu ficar, encorajada por seus superiores e colegas. 

“Vou sentir falta deles todos os dias”, diz Karina, filha de coronel e sobrinha-neta de general, que desde pequena sonhava seguir carreira militar. Desde outubro ela mora na mesma Escola Militar onde, em 1977, seu pai, o ex-presidente Lucio Gutiérrez, se graduou subtenente, daqui tendo saído para estudar na Escola de Educação Física do Exército, no Rio, onde foi o primeiro da turma. Aqui, ela cumpre uma dura jornada das 5h30 às 18h30, incluindo aulas, educação física e instrução militar.

Na quarta-feira, com a destituição de seu pai pelo Congresso, depois de perder o apoio do comando das Forças Armadas, Karina obteve licença de seus superiores para ir para a casa de seus tios, junto com a mãe, a médica Ximena, e a irmã, Viviana. Voltou no domingo à Escola, depois de acompanhar o pai, a mãe e a irmã na fuga para a base de Latacunga, onde eles embarcaram de madrugada no avião da Força Aérea Brasileira. No percurso de 40 minutos de helicóptero, chorava e beijava o pai, que também chorou. 

Ao fim da entrevista, ela manda uma mensagem para sua família em Brasília: “Não se preocupem comigo, porque posso cuidar muito bem de mim. Que os três se cuidem entre si, muito. Quem mais necessita agora é meu pai. Então, que estejam com ele.” E faz um pedido ao repórter: “Será que você poderia mandar esta gravação para eles?”

Como foi a sua decisão de seguir carreira militar?

Eu sempre quis ser militar, desde pequena. Fiz dois semestres de eletrônica na universidade e me dei conta de que prefiro ser militar. Se gostasse da faculdade, não a teria deixado tão facilmente. Mas isto, não consegui deixar. Gosto de eletrônica, mas gosto mais disto. Depois, quero conciliar as duas coisas. Agora, os militares podem estudar bastante. Temos a Universidade Politécnica do Exército.

Você pôde consultar seu pai e sua mãe sobre a decisão de ficar?

Eles me apoiam porque sabem que é o que eu quero. Da mesma maneira como eu o apóio e não poderia ter pedido a meu pai que ficasse aqui. Uma família busca o bem-estar de cada um. Para meu pai, era melhor ir embora. Para minha mãe e minha irmã, era melhor acompanhá-lo. Para mim, era melhor – é melhor – ficar.

Você já falou com eles?

Sim, no domingo, quando eles chegaram lá, nos falamos pelo telefone.

O que eles disseram? 

Que os três estavam bem, que estavam em um apartamento, onde iam ficar por uma semana.

Você acha que terá a oportunidade de ir visitá-los?

Sim. (Volta-se para o oficial que acompanha a entrevista: ‘Daqui a quanto tempo, meu capitão?’ ‘Quatro meses’, responde ele.) Dentro de quatro meses poderei pedir licença, por três semanas.

E daí você vai a Brasília?

Sim, estão em Brasília. Nem sabíamos para que cidade eles iam (risos).

Você já esteve no Brasil?

Em 2003, fui com meu pai à posse do presidente do Paraguai (Nicanor Duarte). Fomos a Foz do Iguaçu, ver as cataratas, porque ele adora essas coisas. Fomos só até a fronteira.

Você gostou?

Bastante. O idioma também é parecido ao espanhol. E as pessoas são latinas como nós, iguais.

O que você sabe sobre o Brasil?

É o país que está melhor economicamente na América do Sul. Tem muito boas relações com os países sul-americanos, sobretudo com o Equador. Tem cidades muito grandes, tem carnaval, são católicos, são gente calorosa, por isso receberam meu pai. E acho que o presidente Lula está fazendo um bom trabalho. Porque creio que a pobreza, que é o problema mais grave, tem diminuído bastante. 

Seu pai está orgulhoso de você seguir a carreira militar?

Ele está orgulhoso porque sabe como é difícil. É a profissão mais bonita, mas creio que também uma das mais difíceis. Porque eu esperava deixar a minha família em quatro anos. E tive de deixá-la agora (os olhos ficam marejados).

Em quatro anos você segue para outra cidade?

Sim, percorremos todo o Equador. Para querer o país, é preciso conhecê-lo.

Você já escolheu uma arma?

Bem, ainda não conheço muito. Gosto de comunicações, engenharia, inteligência militar, por causa do que vivi com meu pai.

Ele é da cavalaria.

Sim, mas o pessoal de inteligência do Exército cuida do presidente. E eu convivi com eles.

Como você se sente?

Já estou há seis meses na Escola Militar e todos os dias, assim como o resto dos cadetes, sinto falta da minha família, e todos os dias vou sentir. Mas daqui lhes dou meu apoio moral, que é o mesmo que necessito deles do lado de lá. Que não se preocupem comigo, porque posso cuidar muito bem de mim (a voz fica embargada).

Isso é uma mensagem para sua família?

 

Sim. Que os três se cuidem entre si, muito. Quem mais necessita agora é meu pai. Então, que estejam com ele. E que tratem de aprender sobre a cultura brasileira, para que, quando eu for, me ensinem.

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