Com capuz de ninja, Gutiérrez foge para o exílio em camburão

O embaixador brasileiro, também disfarçado de policial, acompanhou o ex-presidente na fuga de madrugada

 

QUITO – Eram 4h em Quito (6h em Brasília). O silêncio da madrugada ainda escura e fria foi quebrado por duas viaturas do Grupo de Operações Especiais (GOE) da polícia equatoriana. O portão de trás da residência do embaixador brasileiro, Sérgio Florencio, se abriu. O coronel da reserva Lucio Gutiérrez, de 48 anos, subiu num dos veículos, vestindo o uniforme completo do GOE, o rosto coberto por um capuz ao estilo ninja, o tronco protegido por colete a prova de balas. O embaixador, trajando a mesma indumentária, à exceção do capuz, vinha junto. Dois guarda-costas os acompanhavam. 

A não ser por uma equipe da TV equatoriana, a rua estava deserta. O pequeno comboio seguiu para a base aérea de Quito, contígua ao aeroporto Mariscal Sucre, fortemente guardada pelos militares. Lá, eram esperados pela mulher de Gutiérrez, a deputada Ximena Bohórquez, e as duas filhas do casal, Viviana, de 15 anos, e Karina Ximena, de 20. 

O grupo embarcou num helicóptero da Força Aérea equatoriana, para um vôo de 40 minutos, até a base de La Tacunga, a cerca de 80 quilômetros de Quito, onde a presença militar já era bem menor. A mais emocionada era Karina, que chorava, abraçava e beijava o pai. Cadete do Exército, Karina, incentivada pelos seus instrutores e colegas na Escola Militar, tomara a difícil decisão de ficar e seguir a vida sozinha no Equador. Gutiérrez chegou a consultar Florencio sobre o que ele achava disso. O embaixador, que tem quatro filhos homens, espalhados por Londres, São Paulo, Rio e Brasília, aconselhou o amigo a respeitar o desejo da filha.

O avião da Força Aérea Brasileira pousou às 5h35 – cinco minutos depois do previsto. O amanhecer tingia de rosa o pico nevado do Cotopoxí. Gutiérrez, destituído pelo Congresso na quarta-feira, e desde então asilado na residência do embaixador, despediu-se de Florencio, agradecido. Os três caminharam pela pista, levando duas malas (ao voltar, Florencio perceberia que uma terceira mala tinha sido esquecida). O Sucatinha, o antigo avião presidencial, decolou às 5h55 (7h55 em Brasília).

O embaixador suspirou, aliviado. Chegavam ao fim 87 horas de tensão, desde que recebera o telefonema de Gutiérrez, por volta das 15h de quarta-feira, pedindo asilo diplomático. Carina voltou chorando, ao lado do embaixador, no helicóptero, que, por razões de segurança, pousou noutra base militar, próximo de Quito. Seguiram de carro para a residência. Carina, exausta, dormiu no ombro de Florencio. E voltou para a casa de parentes, onde estivera com a mãe e a irmã desde a destituição do pai.

A longa fuga do coronel começou no fim da manhã de quarta-feira, depois de um telefonema do comando das Forças Armadas avisando que não o apoiavam mais, diante da onda de protestos que culminou numa manifestação de 100 mil pessoas em Quito, na noite da véspera, e depois de uma visita da embaixadora americana, Kristie Kenney, com um recado equivalente. Segundo fontes próximas ao ex-presidente, Gutiérrez chorou em seu gabinete.

Ali se separou da mulher e das filhas, que deixaram o Palácio Carondolet rumo à casa dos parentes, enquanto o presidente embarcava às 13h num helicóptero para o aeroporto de Quito. De lá, pretendia seguir numa avioneta para Tena, sua cidade natal, na região amazônica, no nordeste do Equador. Até aqui, Gutiérrez planejava permanecer no país. Mas, segundo contaria mais tarde aos diplomatas brasileiros, as condições meteorológicas não permitiram o vôo. O helicóptero decolou mais uma vez. Quando manifestantes romperam o alambrado e invadiram a pista, o presidente já não estava mais ali. Ele voou para uma outra base militar perto de Quito, de onde telefonou para Florencio, pedindo asilo.

O ex-presidente chegou por volta das 16h30 no porta-malas de um carro amarelo, acompanhado de um segundo carro, ambos sem nenhuma insígnia. No caminho, telefonou às 16h e às 16h15, para dizer onde estava, e às 16h25, para pedir que abrissem os portões. Dentro do pátio, saiu do porta-malas disfarçado com o uniforme de um time de futebol local. A partir daí, permaneceria confinado por três dias e meio na residência, onde dia e noite se aglomeraram manifestantes chamando-o de “ladrão”, “assassino”, “covarde”, “maricón”.

 

Gutiérrez a tudo ouvia, deprimido. Tentava se autoconsolar, dizendo que a vida era assim mesmo. Falava muito ao celular, organizando os detalhes práticos de sua fuga. Ximena lhe enviou mudas de roupa. O embaixador lhe emprestou um pulôver azul marinho, que ele deixou no quarto que ocupou nesses dias, uma suíte com duas camas de solteiro e uma mesa no meio, com um rádio, pelo qual acompanhava o curso dos acontecimentos. Uma pasta verde sobre uma outra mesa guarda as mensagens de apoio que recebeu. “Os povo pobre está (sic) com você”, escreveu uma admiradora. “Foi um bom presidente para o povo pobre do Equador, que está orando por ele”, diz outra carta.

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