Gutiérrez: nepotismo e amigos na Corte

Equatorianos toleraram hábitos políticos do presidente, até que ele interveio na Suprema Corte e a dissolveu

 

QUITO – Foi uma seqüência de eventos que enojou os equatorianos. Primeiro, o presidente Lucio Gutiérrez costurou uma aliança com o magnata da banana Álvaro Noboa, até então líder da oposição. Juntos, seus deputados destituíram, no dia 8 de dezembro, 27 dos 31 juízes da Corte Suprema, substituindo-os por amigos. Depois, a Corte absolveu o ex-presidente Abdalá Bucaram, que fugiu para o Panamá em 1997, e que já havia sido condenado por corrupção. Bucaram, acusado de levar consigo milhões de dólares em sacos, voltou triunfalmente no dia 2, pousando de helicóptero em Guayaquil. Diante da onda de protestos, Gutiérrez dissolveu a Corte no dia 15, o que foi considerado “a gota d’água”.

Mas a irritação já vinha de muito tempo. Gutiérrez era um nepotista metódico, que faria Severino Cavalcanti parecer um iniciante. Seu irmão Gilmar, deputado pelo Partido Sociedade Patriótica 21 de Janeiro, que Gutiérrez fundou em homenagem ao golpe de 2000, estava a cargo dos negócios com petróleo, dos quais teria, segundo denúncias, arrecadado maciçamente. 

A irmã, Janete, era sua secretária pessoal, a um salário de US$ 6 mil. O cunhado, Napoleón Villa, foi candidato a governador da província de Pichincha (onde fica Quito), tendo a seu dispor helicóptero e outras facilidades fornecidos pelo governo, mas nem assim se elegeu. Depois, Gutiérrez quis colocá-lo no Tribunal Andino, mas foi recusado, por falta de qualificação. Villa tinha outra chave de cofre: cuidava do Fundo de Solidariedade. O filho de seu primo-irmão Renán Borbúa, que não tem diploma nem de segundo grau, tornou-se agregado da embaixada em Washington, com um polpudo salário. A lista é grande.

Outros temas estão vinculados a um forte antiamericanismo entre os equatorianos. Entre eles o uso da base de Manta, no litoral norte do país, pelos militares americanos engajados no combate à guerrilha e ao narcotráfico na Colômbia. “Estão nos metendo numa guerra que não nos corresponde”, diz o empresário Jorge Escobar. O novo governo do presidente Alfredo Palacio, que foi vice de Gutiérrez mas rompeu com ele, estuda pedir a saída dos americanos de Manta, assim como suspendeu a participação do Equador nas negociações envolvendo a Colômbia e o Peru para um Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos.

A adesão incondicional do governo Gutiérrez à chamada receita neoliberal do Fundo Monetário Internacional exaspera os mais esquerdistas. Um fundo de excedentes da exportação de petróleo, acima da previsão conservadora do Orçamento, era destinado à geração de superávit primário e ao pagamento da dívida. A primeira medida do novo ministro da Economia, Rafael Correa, empossado na quinta-feira, foi de canalizar esses recursos, da ordem de US$ 400 milhões, para gastos correntes. 

Correa, que promete “resgatar a soberania” do país, é contrário até mesmo à dolarização, embora admita que ela seja irreversível. Introduzida pelo ex-presidente Jamil Mahuad e estopim de sua queda, em janeiro de 2000, a dolarização pôs fim a uma espiral de hiperinflação e transformou a pequena economia equatoriana num laboratório. 

“A situação piorou”, avalia a fisioterapeuta Norma Eredia. “Os serviços subiram muito, e não pudemos aumentar nossa renda.” Norma cobra US$ 10 por sessão. Nos meses em que ia bem, tirava US$ 400. Nos últimos sete ou oito meses, tem ganhado menos de US$ 200. É o preço do aluguel de um apartamento pequeno em Quito. Ela diz que várias academias de ginástica, nas quais buscava clientes, fecharam as portas. Antes, Norma, o marido e os dois filhos comiam ceviche de camarão a cada três semanas. Agora, quando muito, saboreiam a iguaria andina a cada quatro, cinco meses.

A arquiteta Beatriz Andrade, de 40 anos, não pode fazer chamadas com seu celular. “Não tenho US$ 30 para comprar créditos”, conta Beatriz, que está sem trabalho há um ano. O marido, também arquiteto, sustenta a mulher e os dois filhos. “Essa dolarização foi uma embromação”, diz Beatriz. “Por que outros países não fizeram isso, só nós, que somos pobres?”, pergunta ela. “É lógico que isso é uma componente da insatisfação popular”, analisa Norma, a fisioterapeuta.

 

Para os que não ficaram sem trabalho, como o advogado Cristof Baer, de 39 anos, “a dolarização trouxe estabilidade, apesar que o poder de compra diminuiu”. Segundo o jornalista Diego Cornejo, vice-diretor do jornal Hoy, a classe média, que foi quem saiu às ruas, “tem tirado proveito da dolarização”, e sua motivação “não foi econômica, mas doutrinária, em favor da institucionalidade” do país. “Gutiérrez desinstitucionalizou o Equador”, diz Cornejo. A mensagem da classe média equatoriana está resumida numa frase do empresário Cesar Vallejo, de 54 anos, o olho direito roxo de um golpe da polícia nas manifestações: “Não somos tontos.” 

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*