Idosos não entram

Barrados nas lotações, que não querem levá-los de graça, velhos ficam confinados na periferia

 


Júlio Stamboni trabalhou durante 30 anos como atendente de enfermagem. Para dar algum conforto à família, tinha dois empregos, trabalhando de dia e de noite, no Hospital do Coração e no Hospital Municipal. Aos 63 anos, Stamboni está aposentado. Agora, é ele que precisa de cuidados: há um ano, teve diagnosticado câncer de pulmão.

“O tratamento está indo bem”, ameniza o ex-atendente de enfermagem. Periodicamente, ele tem de ir ao Hospital São Paulo, levando as radiografias e outros resultados de exames, que se avolumaram ao longo do tempo, e hoje já pesam uns 8 quilos.

Para ir ao hospital, Stamboni atravessa a rua até o mesmo ponto de ônibus que sempre usou na frente de casa, em Americanópolis, zona sul de São Paulo, onde mora há 35 anos. Mas, no lugar dos ônibus, passam agora lotações. E, como não paga, o aposentado, que ao longo da vida recolheu duas contribuições à Previdência, já não é bem-vindo.

Pela manhã, período de consultas e exames no Hospital São Paulo, os 11 miniônibus de 21 lugares que fazem a linha Vila Santa Margarida-Jabaquara lotam na Favela Santos e na Vila Clara. E já não têm lugares para quem não paga quando descem a Rua Mário de Campos, onde mora Stamboni, a 4 quilômetros da Estação Jabaquara do metrô.

Dois lugares – “Temos dois lugares reservados para os idosos”, explica Marcelo dos Santos, motorista da Cooper-Pam, que faz a linha. “Se levamos um idoso em pé, e ele cai, a responsabilidade é nossa.” Santos não acha que a solução seja ampliar a frota. “Se colocar mais carro, a gente quebra”, diz o motorista, contando que tira R$ 5 mil livres por mês, mas paga R$ 3 mil de prestação de seu miniônibus, financiado em 36 meses, com R$ 10 mil de entrada.

Mesmo assim, o motorista garante que transporta cerca de 60 idosos por dia, além dos 300 a 400 passageiros que pagam a tarifa de R$ 1,70. A Prefeitura reembolsa, com base em estimativas, as empresas de ônibus e cooperativas de lotações pelo transporte de velhos, mas o dinheiro vivo ainda é o melhor incentivo para os motoristas encontrarem espaço nos seus veículos.

A pensionista Maria Assunção, de 73 anos, aprendeu um truque para fazer parar os miniônibus: faz sinal com o seu porta-níqueis. Mesmo assim, dona Maria, que tem quatro pontes de safena, já perdeu consulta em seu cardiologista na Avenida Paulista, por não conseguir embarcar. No mês passado, quando ia ao médico, o cobrador gritou de lá de dentro para dona Maria: “Carteirinha, não!” Ela respondeu que ia pagar. Só então pôde subir.

Pior do que não embarcar é subir e ser obrigado a descer. Isso já aconteceu várias vezes com Elza da Silva, de 65 anos, que mora na Nova Cachoeirinha, zona norte. E o que ela faz? “Desço e pego outro”, resigna-se dona Elza, aposentada depois de ter trabalhado durante 25 anos como faxineira em várias empresas. “A gente se sente mal.” O detalhe é que ela já tem o cartão do bilhete único, fornecido pela Prefeitura, e considerado a solução definitiva desses problemas.

Maria de Lourdes Ramalho, de 63 anos, tem uma índole diferente. “Isso existe, sim, mas a gente põe a mão na cara deles”, diz dona Maria. “Eles olham para a gente de cara feia, porque a gente não paga, e eu digo: ‘Infelizes de vocês quando ficarem velhos’.”

Dona Maria, que mora em São Mateus, na zona leste, lembra que uma vez se sentou nos bancos da frente com uma amiga de 67 anos, de Belo Horizonte, e as duas começaram a ser hostilizadas pelo motorista e pelo cobrador. “Não me olhem com cara feia que eu vou pagar”, prometeu ela. “Desci e não paguei”, completa, com uma expressão vitoriosa. “Minha amiga, que era de Belo Horizonte, ficou assustada.”

Muitos motoristas têm interpretado o direito a dois bancos na frente como cota de transporte de idosos. O camelô José Cordeiro, de 55 anos, ainda paga a condução – gratuita para os homens com mais de 65 anos e as mulheres com mais de 60. Mas os seus cabelos inteiramente brancos às vezes enganam os motoristas e cobradores. “Eles não querem me levar quando já tem dois idosos dentro”, diz ele. “Aí eu explico que eu vou pagar.” Na semana passada, na linha de São Mateus para Vila Carrão, conta Cordeiro, o cobrador não deixou dois velhos entrarem porque já havia outros dois lá dentro.

No ponto final da linha de lotações Jardim Guacuri-Jabaquara, o fiscal Benedito Alves assegura que, na frente dele, não acontecem essas coisas. Alves conta que suspendeu por três dias um motorista que mandou um velho descer, porque já estava levando dois de graça. Em caso de reincidência, a suspensão seria uma semana, diz o fiscal. As irregularidades costumam ocorrer longe dos fiscais.

Guarda-chuva – Com os ônibus, esse tipo de problema é mais raro, porque os motoristas são empregados, enquanto nos lotações eles são donos do próprio negócio. Mas também acontece. “Uma vez, o ônibus se encheu de gente que não pagava e o motorista queria expulsar a gente”, lembra dona Elza. “Como é que vou levar só esses velhos?”, perguntou o motorista. “Você pensa que não vai ficar velho?”, reagiu uma passageira e quebrou o guarda-chuva na cabeça dele, conta dona Elza.

Joana Penteado, de 76 anos, recorda que, no ano passado, esperava o ônibus num ponto da Rua Luís Góis, na Vila Mariana. Passaram dois e não pararam, ignorando o seu sinal. Dona Joana pediu então a uma moça para ficar com ela no ponto e fazer sinal para o próximo ônibus, que parou. “Subi, a moça foi embora e o motorista ficou com uma cara de pau…”, ri, orgulhosa de sua esperteza.

Essas dificuldades têm confinado muitos velhos em suas casas, sobretudo na periferia. “A gente não pode ir aonde quer do jeito que quer”, constata Maria Assunção, que só sai de casa uma vez por mês, para ir ao médico ou receber a pensão paga por seu marido no advogado. “Se fosse mais fácil, eu sairia mais”, garante dona Maria, que se queixa que seu bairro, Americanópolis, é muito “esquecido”: drogarias e supermercados, só no Jabaquara.

Os lotações param na frente da estação do metrô e dona Maria tem de cruzar uma avenida. “Eu acho que elas deviam deixar a gente na porta do metrô”, diz ela. “Outro dia, eu estava tentando atravessar e umas moças me chamaram:

‘Vovó, atravessa aqui com a gente'”, conta. A filha que mora com dona Maria pede a ela que não saia de casa. “Eu digo que o que tiver que acontecer vai acontecer.”

A rejeição no transporte público é uma das coisas que tornam a cidade hostil para os velhos. “No Brasil, a porcentagem de velhos já se aproxima da dos países da Europa, só que lá você os vê na rua, enquanto aqui a cidade os esconde, amedronta e exclui”, observa a psicóloga Ruth Lopes, do Programa de Pós-Graduação em Gerontologia da PUC de São Paulo.

Se tudo correr bem com cada um de nós, seremos velhos algum dia. Mas, analisa a psicóloga, “muitos se comportam como se a velhice fosse uma coisa estranha, que não tem nada a ver com eles”. Os velhos são vistos como um peso, que ocupa lugar no transporte coletivo, nos hospitais, etc. Como se não tivessem direito a isso. Como lembra Stamboni: “A gente já deu muito no couro na vida.” 


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