Para o Brasil ser competitivo, não poderá mais manter regras a serviço de exceções.
Quando quiser divertir ou impressionar amigos no exterior, conte a história do motorista de ônibus e do delegado que, por causa de uma buzinada, tiveram um entrevero que arruinou o trânsito de São Paulo. O delegado quis demarcar território; o motorista idem, mobilizou seus colegas e parou tudo.
Ou então conte a do confronto entre policiais militares e civis, quando a PM foi tentar cumprir ordem judicial de transferir ex-policiais civis de um presídio onde brincavam de Pablo Escobar. Não conte as duas, para evitar muito trabalho explicando as diferenças entre Brasil e Índia e entre Brasil e Somália.
Existe um senso de ser especial no Brasil que lembra as castas hindus, mas com uma importante diferença. Não é o nascimento que concede tratamento diferenciado por lei, mas a esperteza e a sorte. Pode vir em forma de aposentadoria especial, de estabilidade, de cartório, de diploma. É possível ter tratamento vip até depois de um crime, com a estranha cela especial para “doutor” como se quem sabe e pode mais merecesse condescendência.
Todo mundo se acha especial, principalmente se der ouvidos à mãe. Quem mexe com publicidade marketing está o tempo inteiro tentando confortar a massa com o tratamento de “cliente exclusivo”, um “você” universal “que é muito especial”.
O que torna o Brasil “especial” é que aqui isso vira lei. Pagar R$ 36 mil de aposentadoria, dar ao congressista direito de se aposentar com vencimento integral depois de curtos oito anos, manter esquemas especiais para militares e ministros, encher funcionários públicos de gratificações que superam seus salários – tudo isso tem estado de acordo com leis e normas. Quando se tenta colocar os vencimentos dos servidores públicos abaixo do salário do presidente, a obviedade do sentido dessa medida parece que não constrange os beneficiados.
Noutros lugares, diz-se que a exceção confirma a regra; aqui, existem regras demais a serviço de exceções. Ser ou se tornar especial, no Brasil, extravasa a fantasia individual e se transforma em finalidade corporativa e social. A atitude tem a naturalidade daí certezas enraizadas e reforçadas pela cultura. Basta ouvir um profissional de qualquer nível, que tenha um bom pistolão, discorrei tranqüilamente sobre sua meta de, quase no final, se tornar juiz classista, ficar uns poucos anos ali e se aposentar divinamente. Ou ouvir um funcionário saudar um parente ou amigo com um “você não precisa ficar na fila, você pode entrar direto, basta me chamar, etc.” É natural aqui, pode ser feito sem nenhum constrangimento e, eventualmente, com orgulho.
A dificuldade maior de lidar com esse sistema está no fato de ele se auto-alimentar. Quanto maior o desamparo, quanto mais pífio o serviço público, quanto maior a impunidade, mais essa atitude faz sentido e se torna necessária; e quanto mais ela se reproduz, maior a exclusão, a negligência, etc. Como não há recurso para tratar todo mundo como especial, é preciso tratar muita gente mal. É difícil calcular se daria para o Estado garantir assistência decente para todos, no País inteiro; não foi tentado ainda.
O desafio se torna ainda maior no processo que o Brasil inicia agora, de abertura de sua economia para um mundo em fase de globalização. Os salários melhoram para os que conseguem continuar trabalhando, porque sabem e valem mais, mas cada vez menos gente tende a ser necessária. Os países desenvolvidos se lançam nesse processo com seguro-desemprego, segurança, saude e educação públicas funcionando razoavelmente. O Brasil sai de seu torpor protecionista com uma mão na frente e outra atrás.
Conseguira desfazer a cilada do privilégio institucionalizado, para alcançar um pouco mais de equilíbrio social, ao mesmo tempo em que experimenta a liberdade e o estresse da economia de mercado? É aqui que as preocupações dos liberais e dos social-democratas deveriam se encontrar. O senador Darcy Ribeiro disse uma vez que o capitalismo brasileiro é bom. Talvez isso se confirme no saudável impulso de ser especial. Não pelos privilégios corporativos, mas pela seleção natural.