Governo vê ligação com descoberta de petróleo na costa, que ex-comandante da Marinha e ex-chanceler descartam
Ela vai e vem na História do Brasil, como o vulto de um navio fantasma balançando no Oceano Atlântico. Sua primeira aparição foi em abril de 1943. Transferida de Norfolk (Virgínia) para Natal, a 4ª Frota americana passou a escoltar, com a esquadra brasileira, os navios mercantes no Atlântico Sul, depois que seis deles foram afundados por submarinos alemães. Em 1950, saiu de cena, absorvida pela 2ª Frota.
Em dezembro de 1976, ela ressurgiu de forma fantasmagórica. O jornalista Marcos Sá Corrêa revelou no Jornal do Brasil, com base em documentos da Biblioteca Presidencial Lyndon Johnson, em Austin, que um porta-aviões, três destróieres, um porta-helicópteros, oito aviões de abastecimento e um de comunicações, oito caças, um posto de comando aerotransportado e quatro petroleiros se reuniram no dia 31 de março de 1964 e rumaram para Santos. Além de centenas de milhares de barris de combustíveis, traziam 110 toneladas de armas e munição, incluindo 250 carabinas calibre 12. O objetivo era apoiar o golpe militar contra o presidente João Goulart, se houvesse resistência. Como não houve, a esquadra voltou para os Estados Unidos, sem entrar em ação. Essa imaterialidade só contribuiu para aumentar sua mística. “É uma sombra na história, algo que poderia ter sido e não foi”, define Sá Corrêa.
“Os EUA intervêm na América Central desde a Guerra Hispano-Americana de 1898, mas aqui nunca houve qualquer tipo de intervenção”, diz o historiador Marco Antonio Villa. “Criou-se um mito no Brasil.”
O anúncio do restabelecimento da 4ª Frota, no dia 24 de abril, reavivou o antiamericanismo dos presidentes de esquerda da região. “Qual é a razão para que os EUA nos enviem essa frota? Nunca vão admitir que é pelos recursos naturais da região”, acusou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, durante a reunião de cúpula do Mercosul, no dia 1º, em San Miguel de Tucumán, Argentina. Segundo o ex-tenente-coronel pára-quedista do Exército venezuelano, a esquadra americana pode, além de cercar a América do Sul, penetrar pelos Rios Amazonas, da Prata e Orinoco. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva entrou no clima: “Agora que descobrimos petróleo a 300 quilômetros de nossa costa, queremos que os EUA expliquem qual é a lógica dessa frota, justamente numa região como esta, que é pacífica.”
“Não creio que a 4ª Frota tenha relação com o Brasil e muito menos com o petróleo”, descarta Luiz Felipe Lampreia, chanceler no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-98). Para ele, trata-se de “uma mexida numa peça relevante do poderio projetável americano para exercer pressão sobre outras casas do tabuleiro, em países que têm posição muito confrontada com os EUA, como a Venezuela, Equador e Bolívia.” O Brasil “não tem com que se preocupar”.
A visão do presidente Lula, de que a reativação da esquadra tem ligação com a descoberta de petróleo na costa brasileira, encontra ressonância no Itamaraty. “Neste momento, é difícil desvincular a 4ª Frota do alto preço do petróleo e das ameaças ao suprimento regular no Oriente Médio, se o quadro é de redução da instabilidade tanto na África Ocidental quanto na América do Sul”, diz uma fonte do Ministério das Relações Exteriores. Segundo o diplomata, mesmo tendo relações “excelentes” com os EUA, o Brasil se preocupa porque a situação é bem diferente com alguns vizinhos, como a Venezuela. Mas ele ressalva que essa visão é “preliminar”: o Itamaraty ainda está analisando a questão.
Algumas quadras acima na Esplanada dos Ministérios, a visão é outra. “Em princípio, a 4ª Frota não é uma preocupação”, diz o ministro da Defesa, Nelson Jobim. “Temos os nossos próprios espaços e eles serão preservados de forma absoluta.” Para Jobim, a medida é apenas uma “sinalização política equivocada”.
“A 4ª Frota está sendo ativada porque deveremos estar entre 2013 e 2014 com 1 bilhão a mais de barris de petróleo por ano, subindo para cerca de 2,8 bilhões”, analisa Jairo Cândido, diretor do Departamento de Defesa da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). “Não é para ocupar ou tomar, mas para vigiar esse território, coisa que nossas Forças Armadas não têm condição de fazer.”
O comandante da Marinha, almirante Julio de Moura Neto, admite que “o Brasil está vulnerável” e não tem condições de proteger adequadamente as suas reservas de petróleo, mas se mostra despreocupado com a 4ª Frota: “Os EUA têm dado todas as garantias de que respeitarão todas as figuras jurídicas”, disse ele. “E a 4ª Frota está sendo reativada para cumprir uma missão antes cumprida pela 2ª Frota, que consideravam sobrecarregada.”
“Acho muito alarde para pouca coisa”, menospreza o almirante Roberto Guimarães Carvalho, que comandou a Marinha até março do ano passado. “Seria muito mais coerente se em vez de ficarmos preocupados com a 4ª Esquadra americana nos preocupássemos com a única esquadra brasileira.” Na sua gestão, Carvalho elaborou um plano de R$ 5,2 bilhões de reaparelhamento da Marinha, mas o pleito não foi adiante. “Se nada for feito, em 2025 a Marinha acaba.” A média de idade dos navios é de 30 a 40 anos, quando deveria ser de no máximo 20. Carvalho não vê relação entre a recriação da 4ª Frota e a descoberta de petróleo na costa brasileira.
O almirante Mario Cesar Flores, ministro da Marinha no governo Fernando Collor (1990-92), também não: “Não muda nada em relação ao que já existe há décadas.” Flores lembra que o Comando Sul, ao qual está subordinada a frota, “sempre teve força naval, só que extraída de outras esquadras”. O almirante diz que simplesmente o que se fez foi “dar ao Comando Sul estrutura similar à de outros comandos”, não havendo razão para “nenhuma preocupação objetiva”.
Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.