Texto condena ações preventivas e defende Tribunal Penal Internacional, Protocolo de Kyoto e outras iniciativas contestadas por Washington
O relatório da comissão de reforma da ONU entregue na quinta-feira ao secretário-geral Kofi Annan contém várias recomendações que entram em conflito direto com as políticas do presidente americano, George W. Bush. O documento, de 97 páginas, que recebeu um entusiasmado apoio de Annan, condena, sem citá-las, ações militares “preventivas” como a que os EUA conduziram no Iraque.
O texto ainda defende o cumprimento das cláusulas sobre crimes de guerra e contra a humanidade do Estatuto de Roma, de 2002, que o governo americano não assinou, assim como a submissão ao Tribunal Penal Internacional, que os EUA não reconhecem; e critica explicitamente o fato de Washington não ter ratificado o Tratado de Kyoto sobre emissão de gases.
O relatório cita o Artigo 51 da Carta das Nações Unidas, recomendando que ele não seja nem reescrito nem reinterpretado. “Nada na presente Carta impedirá o direito inerente à autodefesa individual ou coletiva se um ataque armado ocorrer contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado medidas para manter a paz e a segurança internacionais”, diz o artigo, redigido ao final da 2.ª Guerra Mundial.
“Entretanto, um Estado ameaçado, de acordo com a lei internacional há muito estabelecida, pode adotar ação militar desde que o ataque ameaçado seja ‘iminente’, nenhum outro meio o evite e a ação seja proporcional”, ressalva o relatório da comissão. O texto pondera que há circunstâncias em que se pode argumentar que o ataque não é iminente, mas a ameaça – nuclear ou terrorista, por exemplo – é tão grande que não se pode esperar até que ele seja iminente.
“Se houver bons argumentos para ação militar preventiva, com boa evidência a apoiá-los, eles devem ser apresentados ao Conselho de Segurança, que pode autorizar essa ação”, prossegue a comissão. “Se ele decidir não autorizar, haverá, por definição, tempo para buscar outras estratégias, incluindo a persuasão, negociação, dissuasão e contenção – e visitar de novo a opção militar.”
O texto foi claramente redigido tendo em mente a decisão unilateral do governo Bush de invadir o Iraque no ano passado, com base na alegação de que o ditador Saddam Hussein estaria escondendo armas de destruição em massa e se disporia a usá-las contra os EUA, além de oferecer apoio a grupos terroristas.
Entre os 16 membros da comissão, escolhidos por Annan, estava o general americano Brent Scowcroft, que foi assessor de Segurança Nacional dos presidentes Gerald Ford (1974-77) e George H. Bush (1989-93), pai do atual presidente americano. Scowcroft, que criticou publicamente o ataque ao Iraque, apoiou integralmente o texto de 97 páginas, segundo o embaixador brasileiro João Clemente Baena Soares, que também participou da comissão.
“Na área de mecanismos legais, houve poucos desdobramentos recentes mais importantes que a criação da Corte Criminal Internacional pelo Estatuto de Roma”, celebra o relatório, noutra passagem indigesta para os EUA. “O Conselho de Segurança deve estar pronto para usar a autoridade que tem sob o Estatuto de Roma para remeter casos para a Corte Internacional.”
Também na área ambiental a comissão se ressente das políticas do governo americano. “Os Estados Unidos, que respondem por cerca de um quarto das emissões de gases que causam o efeito estufa, recusam-se a ratificar o Protocolo de Kyoto”, lamenta o relatório, depois de elogiar a sua ratificação, pela Rússia.
Por outro lado, num tópico prioritário para os EUA, o relatório procura acabar com as ambigüidades da atual Carta com relação ao terrorismo, que dificultam sua distinção do que poderiam ser considerados como legítimos “movimentos de libertação nacional”. O texto recomenda incluir na Carta a definição de terrorismo como “qualquer ação destinada a causar morte ou sério ferimento em civis e não-combatentes, com o propósito de forçar um governo ou uma organização internacional a fazer ou abster-se de fazer qualquer ato”.
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