No mundo de Bush, a ordem fica acima da lei

Fernando Henrique analisa as conseqüências de uma eventual vitória de Bush ou de Kerry para os EUA, para o Brasil e para o mundo

De um lado, uma massa conformista aliada a setores religiosos conservadores e a eleitores acuados pela ameaça terrorista. De outro, os tradicionais “liberais”, universitários, negros, jovens. Uns estão plantados no Meio-Oeste. Os outros ocupam as duas costas. Mas o que os separa nitidamente não é a geografia, o extrato social ou a idade, e sim a ideologia. O que não é trivial na vida política dos Estados Unidos.

É assim que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, contratado por cinco anos como professor at large na Universidade Brown, em Rhode Island, analisa esta eleição presidencial americana. Fernando Henrique, que está dando seminários sobre globalização e desenvolvimento econômico e social, ao lado de sua mulher, Ruth Cardoso, que como professora visitante faz pesquisas sobre sociedade civil, cumpre ciclos anuais de cinco semanas ininterruptas na universidade, além de conferências ao longo do ano, conforme prevê o contrato.

O ex-presidente critica duramente o neoconservadorismo de Bush, que “reafirma a noção de país predeterminado à hegemonia e acrescenta a ela uma tonalidade religiosa”. E vai mais longe: “a distância para o fundamentalismo político é pequena”. Para Fernando Henrique, a doutrina da guerra preventiva contra “um inimigo impreciso e não-declarado”, exercitada por Bush, é uma reação irracional como o próprio terrorismo. “Há muita gente que vê a guerra e o inimigo impiedoso, o terrorismo, por toda parte”, diz, referindo-se aos eleitores de Bush. “Para esses, a hora é mais da ordem do que da lei.”

Mantido o rumo da administração americana, analisa Fernando Henrique, “o Brasil terá diminuída sua capacidade de influir no mundo, pois para nós só o multilateralismo abre espaço para uma ação construtiva”. Na sua visão, o mar não está para peixe para a realização do principal objetivo da política externa brasileira: um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Fernando Henrique está escrevendo um livro, a ser publicado pela Editora Record, em que narra e analisa momentos da história recente do Brasil, dos quais participou, como a formação dos novos partidos, a Constituinte, a introdução do real, as crises financeiras e as reformas. Ao mesmo tempo, está trabalhando com um jornalista americano na adaptação do livro para o público dos EUA, onde será publicado pela Public Affairs, de Nova York.

O ex-presidente, que falou de seus contatos com Bill Clinton e de suas impressões de George Bush e de John Kerry, concedeu esta entrevista ao Estado antes de receber, na sexta-feira, título de doutor honoris causa da City University of New York, e de embarcar para São Paulo, onde veio votar. E retorna hoje mesmo para os EUA. Motivo: tem de dar aula amanhã.

Como o senhor define a doutrina do neoconservadorismo encarnada no governo Bush?

A doutrina neoconservadora em voga reafirma a noção de país predeterminado à hegemonia e acrescenta a ela uma tonalidade religiosa. A “missão” de salvar o mundo do mal passa a ter inspiração divina. A distância para o fundamentalismo político é pequena.

Na prática, o que a continuidade dessa doutrina, por mais quatro anos, no caso de reeleição, significará para os Estados Unidos?

A manutenção de um governo inspirado por uma missão quase sagrada de erradicar o que é percebido como desvio da boa conduta acaba por impor políticas restritivas em vários planos: no lidar com os imigrantes, no restringir a possibilidade de práticas científicas (por exemplo no uso de fetos para extrair células-tronco), na restrição ao aborto, em respaldar a pena de morte, em não aceitar acordos internacionais porque limitam a discricionariedade do governo americano (Corte Internacional de Justiça, Protocolo de Kyoto, etc.) e assim por diante. A vitória de Bush, certamente, aumentará o antiamericanismo fora dos EUA.

E para o mundo?

Cada vez menos serão aceitas regras multilaterais para dirimir questões que afetem a ordem mundial. Elas passam a ser vistas como uma limitação para os Estados Unidos exercerem sua missão salvadora, por exemplo, na luta antiterrorista. A ONU é encarada como um fórum incômodo e a “doutrina da ação preventiva” passa a vigorar. Ou seja, o país-líder pode atacar antes que o “inimigo” o ataque.

E para o Brasil?

A rigidez da ideologia neoconservadora limitará alianças e dificultará maior participação nos negócios mundiais dos países que têm influência, como o nosso, mas não são propriamente grandes atores da cena mundial. Isso, ceteris paribus (o resto se mantendo igual), porque, já diziam nossos políticos espertos, política é como nuvem, muda muito. O Brasil não é percebido nos EUA como ator relevante, nem como inimigo. Portanto, não entra no radar vigiado pelos cavaleiros da “boa causa”. Mas, sem dúvida, mantido o rumo do governo atual, o Brasil terá diminuída sua capacidade de influir no mundo, pois para nós só o multilateralismo abre espaço para uma ação construtiva.

Como fica a reivindicação brasileira de um assento permanente no Conselho de Segurança?

Não creio que no momento atual, de grande tensão, sobretudo entre os Estados Unidos e as Nações Unidas, a reforma da ONU prospere. Nossa aspiração a uma cadeira no Conselho de Segurança é antiga, mas sua efetivação só ocorrerá em outra conjuntura internacional.

Que papel os atentados de 11 de setembro desempenharam no florescimento do neoconservadorismo?

O 11 de setembro desencadeou um sentimento de medo, uma atitude defensiva, e ao mesmo tempo provocou os brios nacionais. Deriva daí a noção de que é necessário exterminar prontamente qualquer ameaça, usando todos os meios disponíveis, mesmo que sejam desproporcionais a ela. O medo passou a ser o companheiro da vida de muita gente.

Como essa nova modalidade de terrorismo – ousada, global, suicida, de forte apelo religioso – mudou o mundo?

Não é a primeira vez que se vê a disposição de morrer para derrotar o inimigo. Os submarinos individuais da Alemanha nazista levaram à morte milhares de jovens, assim como os kamikases do Japão. Mas é a primeira vez que o inimigo não usa farda e tem a capacidade de atuar “em rede” a nível mundial, graças, inclusive, à internet e ao sistema financeiro globalizado. Matam e morrem não em nome de um Estado, mas de uma crença. Nesse sentido o terrorismo mudou o mundo, deixando-o mais inseguro e suscitando reações também irracionais, como a doutrina da guerra preventiva contra um inimigo impreciso e não-declarado.

Na sua opinião, qual seria a estratégia correta para combater esse terrorismo?

Não tenho formação para opinar. Mas os europeus parecem ser mais eficazes combatendo-o com ações de inteligência (vide o que ocorreu na Espanha) do que usando a tática dos americanos, de bombardeios mais ou menos indiscriminados, como no Afeganistão e no Iraque. O Clube de Madri, instituição que junta 44 ex-presidentes democráticos que é presidida por mim, organizará em março próximo, lá mesmo em Madri, uma reunião para discutir as respostas democráticas ao terrorismo.

Ganhando Bush ou ganhando Kerry, o senhor vê riscos de conflitos com a Coréia do Norte e o Irã?

Não tenho informações. Mas não acredito que Kerry possa recuar, isto é, desistir de prevenir a corrida atômica na Coréia do Norte.

E com relação ao Iraque, Kerry pode recuar?

Não creio.

Como o senhor avalia o potencial de instabilidade criado pela atuação dos grupos fundamentalistas em países como a Arábia Saudita, maior produtor mundial de petróleo, e o Paquistão, dotado de armas nucleares?

Esse é o perigo maior, o do alastramento da guerra ao Paquistão ou de uma explosão interna na Arábia Saudita.

Por que a América Latina continuou relegada a um plano inferior no debate eleitoral nos EUA?

A América Latina goza aqui do que se chama em inglês de um “benign neglect”, ou seja, uma suave negligência. Acho que isso não é ruim para o Brasil. Quando um país entra no radar americano é porque suspeitam dele. Nesse caso pode ter seus passos restringidos, quando não entra na lista dos inimigos. Melhor pouca atenção simpática do que muita atenção desconfiada.

Como o senhor descreve as relações entre os governos Lula e Bush?

As relações entre os dois governos, no contexto do que disse na resposta anterior, transcorrem sem maiores dificuldades.

Que diferenças haveria, para o Brasil, numa eventual eleição de Kerry?

As relações entre países movem-se por interesses, mais do que por outros valores. Um eventual governo Kerry, como disse acima, deverá deixar mais espaço para nossa ação no quadro do multilateralismo. Mas não suprimiria os choques de interesse comerciais, por exemplo.

Como o senhor vê a estratégia da diplomacia comercial do Brasil – sua rejeição da Área de Livre Comércio das Américas e dos acordos bilaterais, suas dificuldades de fechar com a União Européia e até de manter o Mercosul – frente aos desafios que a eleição americana impõe?

O Brasil, desde a mudança cambial de 1999, vem fazendo o que pode para exportar mais. Nesse momento o mercado mundial é favorável, tanto em termos dos preços quanto das quantidades. Os acordos comerciais, entretanto, estão esbarrando nas dificuldades advindas de um mundo cada vez menos propenso a aberturas de qualquer tipo. A Alca, por exemplo, saiu da cogitação da política efetiva dos Estados Unidos. E o Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) é visto com muita desconfiança.

Quem é o eleitor de Bush?

O eleitor de Bush, a crer nas pesquisas de opinião, compõe-se basicamente pela massa conformista e conservadora concentrada no Meio-Oeste dos EUA e no sul (como no Texas), e pelos eleitores amedrontados. Há muita gente que vê a guerra e o inimigo impiedoso, o terrorismo, por toda parte. Para esses, a hora é mais da ordem do que da lei. Sem contar o voto anticastrista dos cubano-americanos da Flórida e os setores religiosos conservadores, espalhados no país todo.

E o de Kerry?

Kerry é apoiado pelos setores tradicionalmente democratas (parte dos quais hoje é estigmatizada com a rubrica de “liberais”) da Nova Inglaterra (Boston, por exemplo) e de Nova York, bem como pelos habitantes da nova fronteira progressista do Pacífico (Califórnia, por exemplo). Conta com amplo apoio entre os universitários, com boa parte do eleitorado negro, dos mais jovens e, parece, tem maioria entre as mulheres. Mas tanto no caso de Kerry como de Bush, o corte ideológico parece ser mais forte que as diferenças entre os setores sociais ou as características demográficas. E isso é uma novidade na vida política americana.

Os americanos saem divididos dessa eleição? Há ódio nessa divisão?

Os americanos estão divididos e continuarão divididos. Mas é preciso notar que a vida política e as diferenças ideológicas aqui não ocupam o tempo todo da população nem formam um bloco que a divida de alto a baixo. Tudo é fatiado, como eles dizem, “issue oriented” (orientado por temas). Portanto, o enfrentamento atual, a mobilização para votar, que é grande, especialmente entre os jovens, e mesmo o ódio não irão afetar todos os aspectos da vida, nem me parecem impeditivos de integração político-nacional. Veja como os dois candidatos tratam a guerra do Iraque. A discussão é sobre a eficiência do presidente, enquanto comandante-em-chefe, e sua previdência, não a guerra em si.

Se fosse eleitor americano, o senhor votaria em Kerry?

Minha simpatia é, obviamente, para o lado dos democratas.

Qual sua impressão sobre Kerry? O senhor concorda com a imagem de incoerência que se formou em torno dele?

Ele tem um desempenho forte na campanha. Fala claro e duramente sobre as questões internas e sobre as externas, inclusive sobre a guerra, culpando Bush de ser um presidente imprevidente, e um comandante-em-chefe incompetente. A imagem de um político hesitante colou no início, mas está diminuindo.

Teria havido candidato democrata melhor que Kerry para enfrentar Bush?

Difícil saber. Até agora, Kerry está pelo menos empatado.

E qual sua impressão pessoal sobre o presidente Bush?

Pessoalmente não é arrogante. Tem um jeito simples, quase simplista, que cai bem entre certo tipo de eleitores.

Quando foi a última vez que o senhor se encontrou com Bill Clinton?

A última vez que estive com Clinton pessoalmente foi em maio, em São Paulo. Tenho falado com ele pelo telefone. Ainda agora, depois da operação a que foi submetido, falei com ele. Achei que ele estava bem disposto. Disse-me que iria participar da campanha. De fato, está ativo nela, nessas últimas semanas.

Ele acredita sinceramente que Kerry pode vencer esta eleição?

Sim.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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