Para chegar até a ocupação do terreno da Volkswagen, o MTST contou com a ajuda de uma extensa rede de sindicatos, outros movimentos populares, igrejas, universidades e partidos de esquerda
Agachado à sombra de um barraco fechado, o alagoano Jadson dos Santos vigia uns 10 metros quadrados de terra, onde brinca seu filho Gabriel, de 2 anos. Jadson reivindica esse pedaço de chão, que forma um claro na imensa mancha de lonas pretas sobre o terreno da Volkswagen. “Já tenho a madeira e a lona, que o tio de minha mulher nos deu, mas não tenho como ir buscar”, explica Jadson, um vigia desempregado que não pode pagar o aluguel de R$ 130,00 do barraco onde mora, na rua de trás do acampamento.
Terminada a entrevista, Jadson quer saber se é para o credenciamento dos candidatos a uma casa. “O pessoal não tem consciência da luta e se preocupa com cadastro para resolver o seu problema”, desculpa Flávio de Souza, enquanto se afasta com o seu anfitrião. Integrante da equipe de disciplina, Flávio foi escalado pela direção do MTST para guiar o repórter do Estado pelo acampamento. Sua missão: garantir que o visitante não exceda os 20 minutos a que cada jornalista tem direito nem apure informações consideradas sensíveis.
“É melhor não dizer isso, para não comprometer o padre”, atalha Flávio, quando o repórter quer saber de um acampado em que igreja os invasores se concentraram, na noite de sexta-feira, dia 18, antes de partirem em 14 ônibus para o terreno da Volks em São Bernardo do Campo. Foi na Primeira Igreja Batista de Santo André, comandada pelo pastor “progressista” Levi Correa de Araújo, que ofereceu às cerca de 300 pessoas um sopão de legumes e carne, cuja lembrança até hoje acalenta os acampados nas noites de vento frio. O pastor, como as famílias reunidas ali, sabia apenas que se tratava de uma “vigília”, mas não tinha idéia de que naquela madrugada seria ocupado o terreno da Volkswagen.
“Não me sinto traído”, contemporiza Araújo, que depois participou de culto ecumênico no acampamento. “A invasão do terreno pode ser ilegal, mas é moral e justa”, afirma o pastor, formado em Direito, citando Martin Luther King. “O Evangelho é mais revolucionário que os partidos de esquerda”, garante Araújo, que durante a campanha do ano passado recebeu Luiz Inácio Lula da Silva e o pastor americano Jesse Jackson em sua igreja.
Companheira Rosa – Dentre os 35 militantes que atuam diretamente no acampamento, Flávio, de 19 anos, é um quadro exemplar. Enquanto caminha com o repórter por entre as fileiras de barracos, que, segundo os líderes do acampamento, somam 4.200, vai expondo seu notável conhecimento da história e doutrina revolucionárias. “Rosa Luxemburgo foi uma companheira de muita luta”, descreve o rapaz, justificando o nome de uma das cinco brigadas em que se divide o acampamento. “Foi do Partido Social-Democrata e participou da 2.ª Internacional Socialista.”
Flávio, que acredita na revolução e repudia a propriedade privada, sabe mais sobre Ernesto Che Guevara, o líder guerrilheiro que dá nome a outra das brigadas – cada uma com 30 grupos, cada grupo com 30 barracos – e ao lugar onde ele aprendeu essas coisas.
Hoje com 180 alunos, o Instituto Che Guevara de Culturas e Movimentos Populares já formou centenas de militantes. Oferece 17 cursos gratuitos, a maioria de interesse profissional, como contabilidade, desenho e idiomas, mas todos com um pré-requisito: cumprir as oito horas da disciplina “Como funciona a sociedade: Estado e ideologia”, que compreende os tópicos “O que é capitalismo”, “História da luta de classes”, “503 anos de resistência dos povos indígenas e negros”, “Como se dá a exploração” e “Como se mantém a dominação”.
Instalado numa sobreloja no centro de Mauá, na Grande São Paulo, o instituto tem suas despesas mensais de R$ 900,00 cobertas com contribuições de seus 24 diretores e de sindicatos “da esquerda da CUT” – segundo Fábio de Souza, um de seus coordenadores e irmão de Flávio -, em troca dos cursos de formação política que ministra aos seus filiados. O próprio Fábio, de 26 anos, aluno da primeira série do segundo grau e membro da ala radical petista Fórum Socialista, também vive da ajuda de custo dada por sindicatos e entidades que o convidam a ministrar cursos.
A inspiração cubana do instituto tem sido nutrida em viagens de seus dirigentes à ilha de Fidel Castro, organizadas pelo movimento Mística e Revolução, criado em dezembro de 2000 pelo atual assessor especial da Presidência da República Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto. Com 300 militantes, o movimento atua em 30 cidades brasileiras.
Extensão universitária – O Che Guevara, cujo exemplo se espalha por institutos em Guarulhos, São Bernardo do Campo, Diadema e Osasco, forneceu dez militantes para a ação no terreno da Volks. Por trás do instituto, há uma estrutura muito mais ampla de formação política, a Consulta Popular, rede criada em dezembro de 1997 por militantes dos movimentos populares, com apoio da corrente da Teologia da Libertação, da Igreja Católica. No mesmo ano, foi fundado o MTST.
A Consulta Popular, tendo à frente o Movimento dos Sem-Terra, no qual se inspirou o MTST, tem realizado parcerias com professores de esquerda em universidades federais e estaduais, para que eles ministrem cursos em seus acampamentos e mesmo em salas de aula das universidades.
A carga horária dos professores universitários – e as verbas dos departamentos – se divide em ensino, pesquisa e extensão. Os cursos para o MST – que por sua vez destina cotas de vagas para outros movimentos populares, como o MTST – entram no quesito “extensão”, por meio do qual podem ser custeadas viagens, material didático etc. Já sob a rubrica “pesquisa”, os professores podem encaixar projetos de alunos e orientandos, conduzindo trabalhos de campo com os sem-terra.
Desse sistema participam professores de universidades do primeiro time, como USP – cujos prédios da História e da Geografia abrigam as “jornadas socialistas”, no segundo fim de semana de cada mês, com 140 alunos -, Unicamp, Unesp e outras espalhadas pelo Brasil, como a federal de Uberlândia (MG) e a estadual de Chapecó (SC).
“Eles fazem uma leitura mais aprofundada do que muitos cursos nas universidades”, elogia a professora Bernadete Castro Oliveira, da Unesp de Rio Claro (SP), que ministra aos militantes cursos de formação histórico-cultural do povo brasileiro. “A prática evidencia o que na universidade os estudantes custam para ver. A necessidade é uma coisa que os move muito mais rapidamente na formação da consciência”, testemunha a professora, que reconhece que os cursos são fortemente inspirados nas teses marxistas, adaptadas à realidade do Brasil.
As próprias técnicas de recrutamento e formação de quadros, assim como o método de ação, aí incluída a ocupação, a organização do acampamento, a logística e a disciplina, são encontradas “nos melhores livros de história”, diz Fábio de Souza, mencionando a Comuna de Paris e as revoluções russa e cubana. Com acréscimo da experiência adquirida.
Suporte – Para pôr as idéias em prática, o MTST precisa de suporte operacional e assistência técnica, que vai buscar noutras entidades. “Quando preparamos uma ação, fazemos um orçamento, e os setores que nos apóiam se cotizam”, explica Iracema Mendes da Silva, conhecida como Aninha, dirigente do MTST. A maioria deles são sindicatos filiados à CUT, como os dos professores da rede oficial de São Paulo (Apeoesp), dos servidores públicos de Santo André (Sindserv), dos metalúrgicos e dos químicos do ABC, dos metroviários e funcionários do Banespa.
Três dos quatro advogados que conseguiram na Justiça a suspensão da reintegração de posse pertencem ao “coletivo de advogados dos movimentos populares” do PSTU e assessoram sindicatos e entidades. O quarto é o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), que também defende o MST.
No alambrado do acampamento, entre as muitas faixas de entidades, uma bandeira da Confederazione Generale Italiana del Lavoro dá um ar internacionalista ao movimento. Dois dirigentes do MTST estiveram, a convite, na Itália, e trouxeram uma bandeira com o arco-íris, escrito pace (paz), usada numa manifestação em Roma contra a Guerra do Iraque, que agora tremula na entrada do acampamento.
O vereador Aldo Santos (PT), coordenador da subsede da Apeoesp em São Bernardo, conta que o sindicato tem trazido comida ao acampamento, arrecadada em “mutirões de doações” nas vilas da cidade. “É um papel humanitário, não político-partidário”, salienta o vereador, cujo nome, somado ao do presidente Lula, foi usado, em homenagem, para batizar a Vila Lulaldo, formada a partir de ocupação em dezembro de 1989. Segundo ele, estão acampados no terreno da Volks dez professores.
Sigilo – A comida também tem sido fornecida pelo padre Sante Collina, que orienta a coleta entre os fiéis de sua extensa paróquia, com 13 igrejas, em São Bernardo. Depois que Aninha e outros três dirigentes do MTST se instalaram na Favela Montanhão, há um ano e meio, para preparar a ocupação, o padre cedeu um salão de 80 lugares para suas reuniões com os moradores da região. Sante também não imaginou que o terreno ao lado seria ocupado. Informações desse nível os dirigentes do MTST guardam para si, evitando vazamento.
Amigo de Lula, que escondeu em sua igreja quando era procurado pela polícia, durante a greve de 1980, e partidário da Teologia da Libertação, o padre está um pouco desgostoso com os rumos da ocupação. Foram cadastradas, na paróquia, 450 famílias, mas, depois da invasão, carros de som – cedidos pelos sindicatos – fizeram propaganda do acampamento nas vilas ao redor. “Entraram pessoas que não precisam de casa”, critica o padre, que está há 23 anos na paróquia.
Aninha admite que aderiram oportunistas, mas diz que aqueles que não necessitam não perdurarão: “As barracas são uma geladeira à noite e um forno de dia.” Das 4.350 barracas que o acampamento chegou a ter, 150 foram desmanteladas pelos militantes quando constataram que ninguém passava a noite nelas – “oportunistas” têm hábitos diurnos.
Quanto a cadastrar-se nos programas de habitação do governo e esperar sua vez, Aninha diz que, no acampamento da Volks, assim como nos dois outros promovidos pelo MTST, o Anita Garibaldi, em Guarulhos (com 1.870 famílias) e o Carlos Lamarca, em Osasco (350), há pessoas cadastradas há até 15 anos. “Mesmo os programas destinados à baixa renda priorizam quem ganha a partir de três salários mínimos.”
De acordo com a Secretaria de Habitação do Estado, 65% dos 272 mil mutuários têm renda de 1 a 3 salários mínimos e 88%, até 5. Entre 1995 e 2002, foram entregues 165 mil moradias. De janeiro a junho deste ano, ficaram prontas outras 8 mil, e há 62 mil em construção, ao custo de R$ 1,4 bilhão. Até 2006, a meta é construir mais 165 mil moradias. Precisam de moradia 242 mil famílias.
Padre Sante, italiano de Ímola, rejeita também as teorias revolucionárias dos militantes. “São idéias do século passado”, diz o padre, de 64 anos. “Estão querendo nos pintar de vermelho”, protesta Aninha, que garante que seu movimento não tem coloração partidária.