Depois de 14 anos de administrações sucessivas do PT, a prefeitura de Porto Alegre conseguiu reunir grande volume de informações sobre os meninos de rua, mas não tirá-los dela
PORTO ALEGRE – Já passou das 9 da noite. Sob um frio de 14 graus, Jean e Jonas estão sentados numa calçada do centro de Porto Alegre, na frente do caixa automático de um banco, à espera de clientes que deixem para eles alguns trocados. Jean, de 12 anos, reconhece a Kombi branca e o homem negro que desce dela. O educador Luís Fernando Silva Lima, da rede de assistência a meninos de rua da prefeitura, prepara-se para mais uma “abordagem”.
– E aí, Jean, tudo bem?
O garoto se aproxima e responde com um monossílabo. O educador se volta para Jonas, também de 12 anos, que parece ser novo na rua. Apresenta-se, pergunta seu nome, idade, onde mora e estuda. Para o primeiro encontro, é suficiente. “Amanhã, pergunto outra coisa”, explica Lima, um baiano de 41 anos. A abordagem é um longo e paciente trabalho de construção de confiança, para reunir informações sobre os meninos de rua, até chegar ao ponto de sugerir que visitem os abrigos e outras instalações da prefeitura.
Nos últimos três meses, os dez educadores da equipe de abordagem identificaram 366 crianças e adolescentes. Em 1996, eram 47. Silvia Giugliani, coordenadora do serviço, estima que entre 250 e 300 estejam morando nas ruas. Os restantes apenas saem em busca de dinheiro – mendigando, vendendo, traficando, prostituindo-se.
A equipe de abordagem, assim como a rede de serviços de assistência, reuniu volume impressionante de informações sobre esses garotos. Se têm pais ou não, por que estão nas ruas, quantas vezes foram e voltaram, por quais escolas, abrigos e instituições de recreação têm passado, enfim, toda a história de vida e relacionamento com as instituições. Muitas dessas informações, os educadores guardam de cabeça, pelo convívio constante.
O que os educadores de Porto Alegre não conseguem é tirá-los definitivamente das ruas. A própria noção de “tirá-los” é repelida pelos técnicos, como desejo de uma classe média alienada, e como eco das velhas práticas sob o antigo Código de Menores, quando as crianças eram colocadas numa perua e levadas à força para abrigos, com o intuito de “limpar” as ruas.
“Algumas pessoas acham que os meninos enfeiam a cidade e a gente talvez esteja falhando em mostrar o quanto eles são bonitos”, critica Sônia Passos, coordenadora de Políticas Sociais da prefeitura. Segundo Silvia Giugliani, a rua deve ser vista também como um “espaço lúdico” dessas crianças, apesar dos perigos e sofrimentos.
O livro Meninos e Meninas em Situação de Rua, escrito pelos técnicos da prefeitura, vai um pouco mais longe: “A rua dá a esperteza necessária a estas crianças para não caírem ‘nessa jaula de ficar bonzinho’ que a cultura institucional tenta impor para ‘reinseri-las’ socialmente, ‘reintegrá-las’. Isto é, recolocá-los num lugar onde não ofereçam nenhum perigo à ‘ordem’ e ao ‘equilíbrio’ social.”
Noutra passagem, a rua é descrita como “espaço privilegiado para acontecer a educação no sentido amplo do conceito, compreendido aqui como relação de construção de conhecimento, de reelaboração dos saberes individuais e coletivos, de produção cultural e de transformação social”.
Enquanto os educadores da prefeitura de Porto Alegre vão “construindo conhecimento” com a ajuda dos meninos de rua, eles permanecem maciçamente nela. O prefeito de Porto Alegre, João Verle, afirma que o número de crianças tem diminuído, mas não é o que estimam os técnicos que trabalham diretamente com eles. “Ainda não damos muito certo quanto à efetividade do nível de meninos”, admite Silvia, referindo-se ao contingente nas ruas.
Em 14 anos de sucessivas administrações municipais do PT, e 4 no governo estadual, o partido cuja marca mais visível é o interesse pelos problemas sociais não conseguiu atacar de modo eficaz o mais chocante deles: meninos morando na rua.
“Do ponto de vista da eficácia da gestão, pode ser que tenhamos dificuldades de discutir estratégias, mas essa dificuldade não é só do PT ou de Porto Alegre: é do Brasil e provavelmente do mundo”, diz a coordenadora Sônia Passos. “Mas somos referência nessa área, tanto que ganhamos o Prêmio Prefeito Amigo da Criança em 1999 e 2000”, orgulha-se.
O prêmio, concedido pela Fundação Abrinq, não leva em conta o aumento ou redução do número de crianças de rua, mas compara os dados fornecidos pelos municípios inscritos acerca de mortalidade infantil, cobertura de vacina, ensino, etc. Além do volume de informações coletado pelo município sobre as crianças de rua – item no qual Porto Alegre indiscutivelmente se destaca.
Segundo o prefeito, nesses 14 anos, a assistência social não esteve entre as prioridades da administração. Mas o orçamento do ano que vem deve aumentar significativamente os recursos para a área, que este ano somam R$ 23 milhões. “Vamos poder avançar ainda mais, mas isso não significa que vamos resolver esse problema”, advertiu Verle ao Estado. “Passa primeiro pela solução do problema da economia, pela geração de emprego e renda.”
Outro estilo – Ninguém nega que o problema seja espinhoso. Mas os resultados parecem melhores em Curitiba, cidade de população e perfil socioeconômico semelhante, mas gerida, ao longo dos últimos 14 anos, por um estilo diferente de administradores, mais preocupados com técnicas de planejamento e gestão do que com participação popular e exclusão social.
De acordo com a Fundação de Ação Social de Curitiba, 123 crianças e adolescentes moram nas ruas. Quando foi prefeito, entre 1989 e 1992, Jaime Lerner (PFL) chegou a anunciar que havia “zerado” o número de meninos de rua, embora os moradores acreditassem que ainda havia alguns na época.
Duas coisas chamam a atenção em Curitiba: o esforço em encontrar famílias substitutas para as crianças que não têm como voltar para casa e em fazer os adolescentes andar com as próprias pernas, por meio de capacitação profissional. Para o vereador Renato Guimarães (PT), secretário de Assistência Social na administração Tarso Genro (2001-2002), “esse é o componente que falta em Porto Alegre”.
Os adolescentes de rua se ressentem da falta de perspectiva de saírem da rede de apoio. Neori Vilson dos Santos, representante deles no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, conta que ficou um ano no Acolhimento Noturno, um albergue da prefeitura. Quando completou 18 anos, foi apresentado aos assistentes sociais do albergue para adultos. “O encaminhamento deles é esse”, diz Neori.
Aos 19 anos, Neori conseguiu sair da rede. Trabalha no Movimento de Meninos e Meninas de Rua, como educador, faz pinturas e cursa a sétima série. Além dele, só conhece uma garota que conseguiu sair do Acolhimento e não voltar para a rua nem ir para o albergue de adultos.
Alexandro, de 21 anos, diz que começou um curso de mecânico na Febem, em 1996. Depois de cumprir sua pena, tentou continuar o curso fora, mas não conseguiu. “Eu queria ter uma profissão para poder sair da rua e melhorar de vida.” A rede de atendimento da prefeitura oferece educação e capacitação profissional – em jardinagem e artesanato com papel -, mas os resultados ainda são modestos, reconhecem os técnicos.
Para o coordenador do Movimento dos Meninos de Rua de Porto Alegre, Luís Antonio Ryzewski, não falta só oferecer mais coisas na rede da prefeitura, mas também exigir, como se faz com uma criança e um adolescente numa família estruturada. “Se não lhes ensinarmos a se virar sozinhos, vamos ter que pagar aposentadoria para eles dos 20 anos até o resto da vida”, diz Ryzewski. “Como vão se inserir no mercado de trabalho, no mundo das relações? Não podemos tratá-los como extraterrestres.”