Educação também é a aposta para mudar o panorama de pobreza da cidade
GUARIBAS, Piauí – Uma coisa o governo Lula já fez por Guaribas: arrancou-a do anonimato. A pequena cidade do sertão piauiense, próxima da fronteira com a Bahia, é agora conhecida como o lugar aonde o presidente não conseguiu chegar. A escolha de Guaribas como local para lançar o Projeto Fome Zero tornara a cidade símbolo da pobreza extrema; a desistência de Lula acrescentou-lhe o estigma de fim do mundo, que por capricho os mapas parecem confirmar: depois de percorrer 140 quilômetros de terra rumo a Oeste, a estrada que sai de São Raimundo Nonato termina em Guaribas, sugerindo que não há lugar mais longe que esse.
“Eu sei que não é da minha conta, mas vocês não chegam com esse carro lá, não”, desaconselha um cético morador de São Raimundo, olhando para o Santana alugado pelo jornal. Pontuada de grandes buracos que formam pequenos lagos nesta época de chuva, a estrada pede de fato uma caminhonete ou um jipe, principalmente nos últimos 40 quilômetros, de Caracol a Guaribas, que consomem quase duas horas.
“Eu fui lá só uma vez e nunca mais voltei”, testemunha outro morador de São Raimundo. “Aquilo lá é um deserto. O único banheiro da cidade é na casa do prefeito.” Já não é verdade. Guaribas não tem rede de água e esgoto, mas em várias casas já existe banheiro. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) está construindo banheiros em 86 das mais de 900 casas do município, e planeja fazê-los em mais 220.
É menos um problema de pobreza do que de mentalidade. Tradicionalmente, os moradores de Guaribas não ligam para higiene e limpeza. Na cidade há 54 antenas parabólicas, muitas delas em casas sem piso, reboco e sanitário. Uma casa sem banheiro pode ter televisão, aparelho de som e carro.
O secretário da Educação do município, José Ferreira Neto, acredita que o que vai mudar Guaribas é o ensino. “Quem vai questionar seus pais sobre por que deixam de fazer reboco ou banheiro na casa para comprar TV, parabólica, som e geladeira são os filhos deles”, diz Ferreira. Há 2.052 crianças matriculadas nas escolas, cujo número passou de 3, em 1997, para 17. A educação consome hoje 40% da receita mensal de R$ 150 mil da prefeitura.
Os antigos professores autodidatas, que até o ano passado cobravam R$ 5 por mês de cada família para dar aulas às crianças, foram aposentados e substituídos por 58 professores, todos com formação universitária. Trazidos de São Raimundo, eles recebem salário de R$ 900, além de alojamento e alimentação. “Estamos fazendo uma revolução cultural em Guaribas”, orgulha-se Ferreira, formado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).
A alta taxa de mortalidade infantil, um dos indicadores que colocaram Guaribas em antepenúltimo lugar no ranking brasileiro do índice de desenvolvimento humano, vem caindo drasticamente. Em 2000, quando foi implantado o Programa de Agentes Sanitários, morriam 60 de cada mil crianças nascidas vivas. Em 2002, esse número baixou para 40. A meta é chegar ao fim deste ano com 20.
Para atingi-la, segundo o enfermeiro Lauro César Morais, o município deve ter até o fim do ano cobertura integral de assistência pré-natal e de no mínimo 95% de vacinação. Setenta crianças carentes recebem leite e óleo, por meio do Programa de Combate a Carências Nutricionais, no qual o governo federal entra com R$ 1.200 e, a prefeitura, com R$ 2.000. O município tem 12 agentes de saúde, que receberam R$ 200 extras para fazer o cadastramento para o Fome Zero.
Na visão do prefeito Reginaldo Correia da Silva (PL), as prioridades de Guaribas são: água, que os moradores têm de ir buscar todas as manhãs nos “olhos d’água” que minam das rochas do lado norte da cidade; estradas, para facilitar o acesso a alimentos que a região não produz e ao cerrado, uma área cultivável virgem que começa a 6 quilômetros dali, do outro lado da Serra de Simitumba; e materiais de construção, para incrementar a segurança e higiene das casas, a maioria de tijolo cru e sem reboco.
“Sacola de feijão e arroz, ninguém quer aqui, não”, avisa o secretário da Educação. Depois que Guaribas apareceu no noticiário, com a intenção de Lula de visitá-la com seu ministério e torná-la ponta-de-lança do Fome Zero, a Volkswagen decidiu demonstrar vontade de cooperar mandando mil cestas básicas para a cidade, que tem pouco mais de 900 domicílios.
Os dois caminhões com os pacotes de 13 quilos de feijão, arroz, macarrão, açúcar, óleo, leite em pó, café e farinha ficaram parados atrás da igreja, sem que ninguém fosse buscar o presente. Os membros do conselho criado para gerir o Fome Zero resolveram então levar uma cesta para cada casa. Muitos moradores tomaram como ofensa e as devolveram.
“Claro: temos gente pobre”, admite Ferreira. “Mas não é desses que não têm o que comer. Temos carências nutricionais porque não há o que comprar, porque não há estrada.” O caminhão de verduras vem uma vez por semana e vende tudo. O difícil acesso à cidade encarece tudo: alimentos, produtos de limpeza, materiais de construção etc.
Até os mais pobres, que gostariam de comer melhor, reconhecem que sua carência maior é de atendimento médico, remédios e transporte. “Aqui tem muita ‘carenteza’, mas pior que a da fome é a da doença”, diz Germano Mariano da Silva, de 49 anos, que mora com a mulher, 8 filhos e 3 netos num terreno a 1 quilômetro da cidade, onde planta feijão, milho e mandioca. É o que a família almoça e janta. “Café da manhã não está tendo”, diz Germano. “Só se Deus preparar.”
Guaribas não tem hospital. Um médico que mora em Teresina e vem alguns dias na semana e um enfermeiro atendem no posto de saúde os casos mais simples. Os mais graves têm de ir para São Raimundo ou mesmo Teresina, 600 quilômetros ao Norte. A prefeitura firmou em agosto convênio com a Secretaria de Saúde do Estado para adquirir uma ambulância, mas até hoje ela não chegou.
“Fome, a gente não passa aqui, não”, diz João Rocha, de 42 anos, que vive na cidade com a mulher e 7 filhos. Todos trabalham na roça da família e dos vizinhos, recebendo por empreitada. “Eu preferiria dinheiro para comprar remédio”, diz Rocha, à pergunta sobre o que acha do Projeto Fome Zero.
Raimunda, a mulher de Rocha, é uma das que mais caminham todos os dias para ir buscar água, já que sua casa fica no extremo oposto aos olhos d’água dos paredões rochosos do lado norte da cidade. Ele cavou com picareta 8 metros em busca de água, mas parou numa rocha. “Não tenho ferramenta para furar a pedra”, diz, olhando para o poço seco.
Cabe às mulheres carregar os baldes de 18 litros na cabeça, todos os dias. No tempo da seca, de abril a setembro, as famílias só têm direito a um balde a cada dois dias. Cada família paga R$ 1 por mês a um fiscal, para ninguém exceder a cota.
O solo de Guaribas é de excelente qualidade. O fundador da cidade, Felix Guariba, desertou das forças militares que lutavam contra a Independência, no começo da década de 1820, e saiu à procura de terra boa, até encontrar esse local. A terra não precisa de correção nem de adubo. Mas não retém água no subsolo. Por isso, não dá para verduras e arroz.
A solução para a falta de água em Guaribas seria a perfuração de três grandes poços na localidade de Cajueiro, a 25 quilômetros em linha reta, onde há água em abundância, e a construção de uma adutora para trazê-la até a cidade. Cada poço custaria de R$ 60 mil a R$ 80 mil. A adutora não foi orçada.
Do outro lado da Serra de Simitumba, começa uma faixa de 60 quilômetros de cerrado, completamente virgem. A prefeitura está melhorando, com recursos próprios, a estrada de 6 quilômetros que leva a Santa Cruz, do outro lado da serra. Com a melhoria do acesso, e se houvesse incentivo, ali poderia surgir uma nova fronteira agrícola, com a vocação do cerrado para a soja, o arroz e o gado. Sem ajuda de fora, a obra anda em ritmo lento.
Água e estradas são o que faltam para Guaribas melhorar sua condição de vida, gerar renda para seus moradores e seguir com as próprias pernas. Mas ninguém perguntou à cidade do que ela precisa.