O coração acima da razão

O instinto e o senso comum, mais do que o intelecto, passam a governar o País

 

 

Na volta à terra natal como presidente eleito, em novembro, Luiz Inácio Lula da Silva disse que governaria mais com o “coração” do que com a “razão estatística” e a “massa encefálica”. Poderia ser uma declaração motivada pelo emocionalismo da visita, ou mesmo figura de retórica populista. Não é. Lula é um homem essencialmente emotivo. O sentimento e a intuição têm papel central no seu modo de fazer política.

O presidente sabe que terá de negociar com o seu novo cargo, e ambos terão de ceder. Mas não está disposto a abrir mão de sua forma de se emocionar e de interagir com o povo – até porque acredita que essas coisas o levaram à Presidência. No único momento em que alterou a voz durante discurso aos dirigentes sindicais há um mês, Lula avisou: “Nada, absolutamente nada, me fará deixar de falar com o povo.”

Da forma como ocorreram, as aparições de Lula no Fantástico, na noite da eleição, no Jornal Nacional, na noite seguinte, e no Globo Repórter, uns dias depois – quando chorou ao lembrar a mãe -, foram forte manifestação dessa preponderância do sentimento sobre a razão. Uma regra não-escrita das democracias diz que um presidente eleito faz um pronunciamento à nação depois da vitória e, no dia seguinte, concede entrevista coletiva.

Contra a opinião dos assessores, Lula não só elegeu um veículo, como deixou-se ficar 1 hora e 15 minutos no estúdio do Jornal Nacional, aguardando enquanto passavam propagandas e blocos de outras notícias. A produção lhe havia oferecido a alternativa de entrevista de dez minutos, mas o presidente eleito optou pelo outro formato. A razão é simples: “Lula queria ver-se na TV”, explica um assessor. Queria saborear aquele momento único, revisitando sua vida do ângulo de sua vitória. E na tela da Globo.

Não lhe importavam as críticas, que certamente viriam de uma minoria intelectualizada, enquanto dezenas de milhões se identificavam com suas origens e se emocionavam com ele.

Não foi a primeira vez – e certamente não será a última – que Lula teimou com os intelectuais que o cercam. Nos preparativos para a sua primeira disputa presidencial, em 1989, cerca de 40 lideranças da Frente Brasil Popular se reuniram para discutir como o candidato se apresentaria: se de terno e gravata ou com roupas de operário. A versão “operário” venceu.

Depois de ouvir tudo calado, Lula comunicou que tinha gostado da discussão, mas ia usar terno e gravata, explicando que os trabalhadores sonham em vertir-se bem. Seus interlocutores não sabiam disso porque nunca tinham sido operários.

Já em seus primeiros contatos com os intelectuais, Lula havia notado essa inversão. Em entrevista a Denise Paraná, no livro O Filho do Brasil (publicado em 1996 e relançado agora), ele conta como percebeu que havia feministas de classe média disfarçadas de operárias num congresso de mulheres metalúrgicas, pelos idos de 1978: elas estavam maltrapilhas. “Para as mulheres trabalhadoras, o fato de ir para o congresso, era para colocar o melhor sapato, o melhor vestido, perfurmar-se… Eram as feministas malvestidas e as operárias com batom, todas bonitas.”

Era um período de enorme mistificação na esquerda. Até então, partidos socialistas e comunistas no Brasil eram feitos pela elite, não por operários. Esses militantes tinham uma visão romantizada dos operários e dos pobres. A ascensão de Lula e seu contato com os intelectuais de esquerda possibilitaram o primeiro encontro entre esses dois grupos.

Com as greves do fim dos anos 70 no ABC Paulista, por ele comandadas, Lula passou a ser assediado por intelectuais, que queriam conhecer o fenômeno do surgimento de uma liderança de origem popular. O interesse foi recíproco.

Lula, que não teve formação acadêmica nem adquiriu o hábito da leitura sistemática, aproveitou esse contato para aprender sobre as mais diversas áreas do conhecimento. “Assim como temos livros de cabeceira, Lula tem pessoas de cabeceira”, define Marco Aurélio Garcia, assessor do presidente para relações exteriores.

“Durante a campanha, ele encontrou tempo para me ligar e perguntar a respeito do meu livro sobre o Juscelino Kubitschek”, conta a socióloga Maria Victoria Benevides, autora de O Governo Kubitschek (1976). “Queria se aprofundar no tema por causa do centenário.”

Uns meses atrás, o geógrafo Aziz Ab’Sáber, outra “pessoa de cabeceira” de Lula, fez-lhe algumas considerações sobre os três enfoques de seus estudos de geografia física e humana: o nacional, o regional e o setorial. “Disse essa frase a Lula pensando que ele ia esquecer. Num discurso recente, ele declarou que o governo precisa pensar no nível nacional, regional e setorial.”

Lula lê jornais, apostilas preparadas pelos assessores e alguns livros. Tem predileção por biografias. Esta Noite, a Liberdade, de Dominique Lapierre e Larry Collins, sobre Mahatma Gandhi, e A Estrela Solitária – um brasileiro chamado Garrincha, de Ruy Castro, estão entre as que o marcaram. Mas não leu os clássicos nem inclui os livros em sua rotina.

Sua capacidade de ouvir, assimilar e dar uso prático aos conceitos chama a atenção dos intelectuais que o rodeiam. “Lula toca de ouvido”, resume Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, amigo do dirigente petista desde 1980, quando trabalhava na Pastoral Operária do ABC. “Enquanto preciso ‘ralar’ levando às vezes três dias para ler um livro, ele assimila todo o conteúdo num almoço de duas horas com o autor.”

O secretário de Relações Internacionais do Município de São Paulo, Jorge Mattoso, sintetiza sua admiração com uma palavra: gênio. “Uma pessoa com a dificuldade que ele teve, para ir superando passo a passo, às vezes com saltos, não é só inteligência”, analisa Mattoso, professor de economia da Unicamp.

Nos encontros que mantém com os intelectuais petistas, para avaliação de conjuntura ou discussão de temas específicos, Lula é o único que não costuma tomar notas. Mas impressiona os participantes com as sínteses que faz ao final, organizando, de cabeça, os conceitos expostos, e tirando conclusões.

“Fiquei absolutamente pasma”, conta Maria Victoria Benevides, da Faculdade de Educação da USP, ao lembrar seu desempenho num desses encontros. A professora, especialista em sistema partidário, diz que discute reforma política com Lula “de igual para igual”, concordando numas coisas e divergindo noutras.

Lula não domina categorias técnicas, mas, em compensação, é capaz de apropriar-se de algumas delas para consumo político. Foi o caso do termo “contrato social”, que um intelectual mencionou, em seu sentido original, num encontro do PT. Lula, que não leu Rousseau, incorporou a expressão ao seu lema político.

“Lula nunca cedeu ao racionalismo cartesiano”, diz Frei Betto. “É muito intuitivo.” Não que ele despreze o conhecimento científico. Ao contrário. “Ele tem certo fascínio pela universidade”, observa Marco Aurélio Garcia. Em sua visita a intelectuais do Rio, depois da eleição, declarou-lhes, em agradecimento: “Vocês são os diplomas que não tive.”

“Lula é o exemplo da inteligência nata do brasileiro dos sertões”, testemunha Ab’Sáber, que o presidente eleito consulta sobre temas sócio-ambientais. “Eles têm um talento natural para meditar sobre as coisas.” Para o pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP, um político precisa saber cruzar as opiniões de especialistas com as expectativas da sociedade. “Lula faz isso bem.”

A intuição é uma faculdade valorizada entre os políticos e a história está pontuada de líderes que primaram mais pelo instinto do que pelo intelecto. “O governante precisa de instintos políticos agudos, não precisa tanto de ler”, diz o jornalista americano Norman Gall, diretor do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. “Reagan não leu quase nada. Dormia nas reuniões. Mas foi cercado por assessores muito agudos.”

Juan Vicente Gómez, que presidiu a Venezuela de 1908 a 1936, era “semianalfabeto, mas se cercou de letrados”, recorda Gall, radicado na América Latina desde 1961. Outro exemplo clássico foi Lázaro Cárdenas (1934-40), no México, que consolidou o Partido Revolucionário Institucional, promoveu a reforma agrária e nacionalizou o petróleo.

Com tantos intelectuais a rodeá-lo, Lula – que fez até a quinta série e depois o curso de torneiro mecânico no Senai, na época equivalente ao ginásio – poderia ser facilmente influenciável. “Lula tem um pé atrás com quererem fazer a cabeça dele”, diz Frei Betto. Ele se vacina ouvindo especialistas de opiniões divergentes. Além disso, deposita enorme confiança na sabedoria do senso comum e na experiência prática. Sobre transporte rodoviário, por exemplo, além de especialistas, foi ouvir um parente caminhoneiro, que rodou o País todo e conhece cada buraco das estradas brasileiras. 


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