Após 18 dias de agonia, Praça Tahrir explode em festa com anúncio de número 2 do regime. Junta militar assume poder
CAIRO – Mais de 300 mortos e 18 dias depois, o presidente Hosni Mubarak finalmente ouviu a voz das ruas do Egito, em especial da Praça Tahrir, que em árabe significa Libertação. Era o fim de uma das mais persistentes ditaduras do Oriente Médio – Mubarak estava no poder havia 30 anos -, festejado euforicamente pelos manifestantes. As atribuições de governo foram entregues a uma junta militar, comandada pelo ministro da Defesa, marechal Mohamed Hussein Tantawi, de 75 anos.
Mubarak deixou o Palácio Presidencial, refugiando-se com a mulher, Suzanne, no balneário de Sharm El-Sheikh, no Mar Vermelho, segundo um funcionário do Partido Nacional Democrático, governista. A renúncia surpreendeu os egípcios, depois que na véspera o presidente havia descartado, pela terceira vez em duas semanas, essa possibilidade.
Foi o segundo ditador derrubado por manifestações de rua em um mês no mundo árabe. No dia 14, Zine El-Abidine Ben Ali fugiu para a Arábia Saudita, depois de governar a Tunísia durante 23 anos. Sua queda serviu de combustível para uma onda de protestos em vários países árabes, embora a manifestação do dia 25 (Dia da Polícia) já estivesse marcada no Egito, para denunciar a morte, em junho, de Khaled Said, de 28 anos, espancado por policiais por ter se recusado a pagar-lhes propina.
Dezenas de milhares de pessoas ocupavam a Praça Tahrir, no 18.º dia de protesto, quando o vice-presidente Omar Suleiman apareceu por menos de 10 segundos na TV estatal, para anunciar que, “neste momento grave” pelo qual passava o país, Mubarak, de 82 anos, havia decidido transferir seus poderes para o Conselho Supremo das Forças Armadas. Suleiman, figura odiada pelos manifestantes e oposicionistas, por ter chefiado durante quase duas décadas a temida Mukhabarat, o serviço secreto egípcio.
O anúncio, feito pelo alto-falante de um dos palanques da praça, espalhou-se rapidamente pela Tahrir, quando muitos manifestantes estavam inclinados no chão, fazendo a quinta e última oração do dia, ao escurecer, por volta das 18 horas locais (14 horas em Brasília). A notícia foi recebida com uma mistura de euforia e incredulidade. As pessoas começaram a pular e a se abraçar, rindo e chorando ao mesmo tempo. Soldados do Exército foram carregados nos ombros de manifestantes, agradecidos pelo papel desempenhado pelos militares, que protegeram a praça dos ataques de policiais e ativistas pró-Mubarak, lançados no que ficou conhecido como a Quarta-Feira Sangrenta, no dia 2. Duas horas e meia mais tarde, o Conselho Superior das Forças Armadas, para o qual os poderes da presidência foram transferidos, divulgou um comunicado, no qual afirmou que assumirá a condução do processo de forma interina e “não há legitimidade fora do povo”.
Não estava claro ontem à noite como ficará o calendário eleitoral, mas um novo Parlamento também deve ser eleito. Uma comissão de representantes da oposição deve decidir sobre esse calendário, em conjunto com os militares, enquanto um grupo de juristas deve propor mudanças constitucionais destinadas a assegurar eleições livres e justas. O Conselho, chefiado pelo comandante das Forças Armadas, general Sami Enan, informou que haverá mais adiante um novo comunicado, que provavelmente estipulará esses detalhes. A junta também estuda a dissolução imediata do Parlamento e a demissão do gabinete.
Num gesto carregado de simbolismo, a Irmandade Muçulmana, durante décadas perseguida pelos militares, saudou o papel desempenhado pelas Forças Armadas. Fundada em 1928, como primeiro grupo fundamentalista islâmico, a Irmandade deve assumir um papel de destaque na transição e possivelmente nas eleições, por reunir boa parte do eleitorado religioso.
“Esse é o melhor dia da minha vida”, disse Mohamed ElBaradei, ex-secretário-geral da Agência Internacional de Energia Atômica e Prêmio Nobel da Paz. Ele garantiu não ter intenção de se candidatar à presidência.
“Esta nação renasceu, este povo renasceu, este é um novo Egito”, exultou o ex-deputado Ayman Nour, que ficou na prisão por quatro anos, depois de ter disputado com Mubarak a única eleição presidencial em que ele permitiu outros candidatos, em 2005.
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