Com União, Estados e municípios ansiosos por poder gastar mais, as contas não fecham
A confirmação esta semana de que a Prefeitura de São Paulo não optaria pela amortização antecipada de uma parcela de sua dívida com a União, perdendo a chance de pagar juros mais baixos, trouxe à tona a asfixia dos municípios. O problema não é novo, mas vem se agravando.
A Constituição de 1988 encarregou os municípios do ensino fundamental e do atendimento básico de saúde, prevendo que a União lhes destinasse recursos para esses fins. E ela o fez. A fatia dos municípios no bolo de tributos nacionais cresceu de 11%, em 1987, para 19,5%, hoje.
Entretanto, a União e os Estados foram-se livrando, com desenvoltura ainda maior, de suas obrigações. Estradas vicinais, assistência técnica para agricultores e transporte escolar para seus filhos, fiscalização do trânsito, guardas municipais e Banco da Terra são alguns dos serviços que as prefeituras têm assumido.
Os prefeitos reclamam que os gastos aumentaram numa velocidade muito maior que os repasses. E o governo não tem sido exatamente ágil no reajuste das verbas. A da merenda, por exemplo, foi fixada em R$ 0,13 por aluno em 1994, ano da sua municipalização, e continua nesse valor até hoje, quando o custo atual é de R$ 0,50, segundo Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional dos Municípios. Já o Programa de Atenção Básica à Saúde paga os mesmos R$ 10 por habitante por ano que pagava há cerca de quatro anos.
Paralelamente, os municípios foram excluídos dos benefícios da espetacular ampliação da carga tributária, puxada por três contribuições (Cofins, CSLL e CPMF), cuja receita de R$ 70 bilhões, ou 6,1% do PIB, fica toda para o governo federal. O Imposto de Renda, uma das principais fontes de receita dos municípios, que recebem 25% de sua arrecadação, teve a participação na arrecadação federal reduzida de 29%, em 1989, para 23%, hoje. “Não temos como nos adequar à Lei de Responsabilidade Fiscal”, adverte Ziulkoski.
A renegociação com os 183 municípios que tiveram suas dívidas, no valor de R$ 20 bilhões, refinanciadas em 2000 não está na pauta imediata do futuro governo. Nem há essa expectativa na Prefeitura de São Paulo, por exemplo, cuja área financeira sabe que a União precisará de cada centavo do R$ 1 bilhão anual que ela paga para alcançar o almejado superávit primário no ano que vem.
A prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, almoçou na sexta-feira com o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, ambos do PT, e ouviu dele que a saída para todos virá com a reforma tributária. Marta se disse convencida de que esse seja o caminho. A solução também tem sido bem acolhida por importantes governadores eleitos, como Aécio Neves, de Minas Gerais, atual presidente da Câmara dos Deputados e liderança ascendente do PSDB, que fará oposição a Lula.
Dúvidas – O que não está claro é como a reforma tributária pode resultar num alívio fiscal. O futuro governo está comprometido com um superávit primário (receitas menos despesas, sem contar juros) da ordem de 4% do Produto Interno Bruto (PIB). O mercado tende a exigir superávits crescentes para aplacar a própria desconfiança.
Os primeiros sinais não apontam para a redução do gasto público federal. A primeira medida anunciada pelo futuro governo, o Programa Fome Zero, representa um gasto de R$ 5 bilhões. Fala-se em novas secretarias e em ampliar a estrutura governamental na área de promoção comercial, por exemplo.
Por outro lado, a carga tributária brasileira, de 35% do PIB, é a maior dos países em desenvolvimento e já alcançou a da França, cujos cidadãos podem confiar na educação e saúde públicas.
Se o governo federal não quer gastar menos e se não pode reduzir o superávit primário, onde vai encontrar recursos extras para ajudar os outros? “É justamente aí que a reforma tributária não fecha”, diz Gilberto Luiz do Amaral, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, de Curitiba. “Dizer que ela vai sanear a União, Estados e municípios é mentira.”
Uma reforma tributária seria boa para simplificar o regime e aumentar sua eficiência, desonerar as cadeias produtivas, melhorar a competitividade e impulsionar as exportações. Não para dar mais dinheiro ao poder público.
“Sabemos onde essa conversa começa e onde termina: no aumento da carga tributária”, irrita-se o tributarista Antonio Carlos Rodrigues do Amaral. “Não tenho dúvida de que a carga tributária vai estar em 38% ou 39% daqui a um tempo”, resigna-se Paulo Ziulkoski. O presidente da Confederação Nacional dos Municípios não acredita que a reforma tributária possa resolver o problema e diz que não está atrás de favores: “Queremos um encontro de contas.”
Cobertor curto – De onde seria mais justo cortar? Ziulkoski argumenta que, sob a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em 2000, os municípios são os que têm ajustado mais as suas contas. Em 2001, o déficit público nominal (receita menos despesas incluindo juros) era composto de 40% da União, 52% dos Estados e 8% dos municípios; no ano passado, a União continuou com 40%, os Estados subiram para 57% e os municípios caíram para 3%.
O especialista em contas públicas Raul Velloso vê a questão sob outro ângulo: “É verdade que a União está recorrendo mais às contribuições, mas ela também tem a tarefa de principal gerador de superávit primário (receita menos despesas excluindo juros)”, diz ele.
O fato é que “o Estado não cabe no bolso dos cidadãos”, resume Rodrigues do Amaral. Em vez de aumentar a receita, a discussão deveria ser sobre diminuir gastos. Se ninguém ceder e se todos continuarem agindo como se os recursos fossem ilimitados, não há pacto social que faça essas contas fecharem.