Depois da fuga, 5 dias vagando na floresta

Araujo aproveitou um bombardeio ao acampamento para escapar

 

CARTAGENA – Quando Fernando Araujo foi seqüestrado, há seis anos, havia crianças guerrilheiras de 12 a 14 anos. Uma delas, Leonora, era filha de guerrilheiros. Era uma garota bonita, de olhos claros, um pouquinho nariguda. Sempre alegre. Gostava muito de dançar. Morreu em combate no dia 11 de novembro, aos 18 anos.

No dia 30 de dezembro, véspera do assalto ao acampamento que resultou na sua fuga, o guerrilheiro Belisario, de uns 18 anos, despediu-se de Araujo para uma missão dizendo: ‘Mais um ano que acaba, e ainda não morri.’ No dia seguinte, foi morto na operação militar.

No período em que esteve no cativeiro, Araujo soube da morte de cerca de 50 guerrilheiros. Quatro deles em acidentes com explosivos que estavam montando para usar em atentados a bomba. O restante, em combate. Inúmeros chegaram feridos. Havia sempre uma enfermeira no acampamento. A cada seis meses, vinha um médico.

Araujo era refém da Frente 37 das Farc. Seu comandante, Martín Caballero, vestia sempre uma camiseta com a foto de Che Guevara e uma boina ao estilo do líder revolucionário. Em janeiro do ano passado, a Frente 37 se juntou à 35. Seu comandante, Manuel, conhecido como Mani, de cerca de 40 anos, contou a Araujo que ingressou na guerrilha aos 10, analfabeto. ‘Tudo o que sabe, apendeu na guerrilha’, estima Araujo. Ele calcula que as duas frentes somam 500 guerrilheiros. Acredita-se que, no total, as Farc tenham 10 mil.

Havia operações militares ao redor dos acampamentos permanentemente. Eram ações de infantaria e também bombardeios aéreos. Helicópteros sobrevoavam a área constantemente. À noite, havia freqüentes disparos de morteiros.

No dia 20 de outubro, um atentado a bomba na Escola Militar de Bogotá selou o fim das negociações preliminares sobre a troca de reféns por guerrilheiros presos. O presidente Álvaro Uribe anunciou que a única opção que havia era o resgate militar. A guerrilha redobrou a vigilância sobre Araujo. O governo pediu autorização à sua família para a operação de resgate. Depois de ponderar os riscos, a família autorizou.

O RESGATE

Eram 10h15 da manhã de 31 de dezembro. Araujo estava sentado na rede, ouvindo um programa da rádio Caracol. A historiadora Diana Uribe falava do escritor espanhol Federico García Lorca. Apesar da segurança reforçada, um dos encarregados de vigiá-lo estava jogando futebol. Outros estavam preparando um porco para a festa de fim de ano. Do seu lado, só estavam os dois guardas de turno.

Sempre que havia ataques, a ordem era recolher tudo e esconder-se. ‘Se eu desebodecesse, me matavam.’ Quando ouviu os helicópteros, Araujo levantou-se para guardar suas coisas: uma rede, dois cadernos, uma muda de roupa, o radinho, um cortador de unhas e um isqueiro – nos últimos dois anos, Araujo passara a simular que fumava, para poder ter fogo, no caso de uma fuga à noite.

Mas os helicópteros começaram a disparar de imediato. Quase foi atingido. Ao contrário de outras vezes, quando os disparos ou as bombas caíam a certa distância, dessa vez eram exatamente sobre onde Araujo estava. ‘Era evidente que aquela era uma operação para me resgatar.’ Os dois guardas se protegeram atrás das árvores onde estava amarrada a rede de Araujo e ficaram olhando assustados para o helicóptero, de costas para ele.

Pensou: ‘Ou vou embora ou me matam.’ Sempre que os guerrilheiros pensavam que o ataque falharia, fugiam com ele vivo. Mas, num ataque contundente como aquele, o matariam antes de fugir. Araujo tinha um plano de fuga: subir em direção ao norte, onde havia um povoado chamado Mala Gana, a cerca de 40 ou 50 quilômetros, com um batalhão militar.

Jogou-se no chão e começou a rastejar, como havia visto muitas vezes os guerrilheiros fazerem, durante as fugas. Em cima e dos lados, sentia os disparos e as explosões. Tinha de se proteger e ao mesmo tempo fugir. Só se voltou uma vez, para pegar o radinho, que caíra do bolso.

A FUGA

Quando não viu mais nenhum guerrilheiro, Araujo se levantou e começou a andar, com enorme dificuldade, por causa da vegetação densa e o terreno acidentado. Caminhou até por volta das 14 horas (não tinha relógio e o rádio, molhado, não funcionava), quando encontrou uma pista de pouso, provavelmente usada pelo narcotráfico. Olhou para o céu e viu um avião de reconhecimento e três helicópteros. Ficou de pé no meio da pista, acenando. Não o viram. Estavam engajados no combate aos guerrilheiros – no qual um infante morreu.

Retomou a caminhada. Andou até meia-noite, 1 da manhã. A noite estava clara, com a lua quase cheia e o céu estrelado. Fez as contas. Com a prática de jogging, adquirira o hábito de contar passos. Tinha andado 18 mil: ’12 quilômetros’, pensou. Torceu para estar longe o suficiente dos guerrilheiros. Adormeceu, exausto.

Na manhã seguinte, tentou seguir caminhando para o norte. Mas a vegetação era densa demais. Encontrou o leito de um riacho, que ia para o leste. Mas achou que ao menos podia encontrar água no seu curso. Caminhou 6 quilômetros. O riacho dava numa lagoa seca. Sentiu-se esgotado, tomado pelas câimbras, fruto do esforço e da alimentação pobre em minerais. ‘Foi o momento mais crítico de minha vida’, contou Araujo ao Estado. ‘Pensei que não ia conseguir, que ia morrer de sede ou de fome.’

Não podia seguir pelo norte, por causa da mata fechada e espinhosa. A oeste, além das montanhas, sabia que a estrada ficava longe demais. Ao sul, estava a guerrilha. O leste era a alternativa. Mas também não encontrava saída. Percebeu que tinha tomado a rota errada. Mas se sentia contente por ter tido a coragem de tentar: ‘Se chego a morrer, valeu a pena.’

Caminhou ao redor e encontrou dois cactos. Lembrou-se de como os guerrilheiros os abriam e comiam sua polpa. Desesperado de sede, partiu-o com o salto da botina e devorou metade da polpa, misturada com terra. Pensou: ‘Um cacto para hoje, outro para amanhã.’

Era a tarde de segunda-feira, 1º de janeiro. Resolveu ficar ali. Sua prioridade já não era fugir, mas sobreviver. Lembrou-se de Robinson Crusoé. ‘Enquanto não me capturarem, vou me manter vivo’, pensou. ‘Voltei a recuperar o espírito de aventura.’ Adormeceu. Acordou durante a noite, ouvindo uma balada romântica.

POÇA D’ÁGUA

Levantou-se ainda no escuro. Começou a caminhar, e viu dois porcos selvagens. ‘Tem que haver água aqui’, animou-se. Deu 300 passos e encontrou uma poça d’água de uns 15 metros por 15, que ia até sua canela. ‘Agora agüento alguns dias’, celebrou. ‘Este é meu centro de operações. Vou fazer explorações a partir daqui.’ Caminhou longamente rumo ao leste e ao sul. Não encontrou nada. Teve medo de perder sua poça. Voltou assustado: ‘Daqui não saio mais hoje.’

No terceiro dia, viu uma trilha rumo ao norte e começou a segui-la. Subiu, desceu e, ao cabo de duas horas, chegou ao lugar de onde havia saído. ‘Estou me desorientando.’ Descansou. Pegou a trilha de novo: ‘Dessa vez não vou me desviar.’ Deviam ser 13 ou 14 horas quando encontrou uma cerca que parecia estar sendo reparada. Ouviu golpes de facão. Não via ninguém. Gritou, pedindo socorro. O facão silenciou. Mas ninguém respondeu. Pensou: ‘Será que me enganei? Assustaram-se? Foram buscar ajuda?’ Sentou-se numa sombra, esperando. O calor da tarde e a sede eram tremendos. O tempo passou, não veio ninguém.

Saiu em busca de uma casa. Ao lado de um limoeiro carregado, encontrou uma fogueira de lenha apagada, cinco mandiocas sobre um tronco, um saquinho de sal, uma cumbuca, duas embalagens de café vazias e uma lata de querosene. ‘Não me enganei. Aqui tem gente’, constatou com esperança e medo. Temia que um camponês o devolvesse à guerrilha.

Acendeu o fogo e pôs duas mandiocas para assar. Desesperado de sede, espremeu dois limões na cumbuca e tomou o suco. Arrancou a casca e comeu uma mandioca. Estava crua. Sentiu uma terrível acidez no estômago. Começou a soluçar. Continuou esperando que alguém aparecesse. Adormeceu.

Apenas clareou o dia, levantou-se e saiu procurando uma trilha. Não encontrou. Ligou o rádio, que agora já estava seco, para ouvir se falavam alguma coisa sobre ele. Nada. Eram 7h50 (disse o rádio), quando resolveu voltar para o seu ‘centro de operações’.

Pegou uma mandioca, cinco limões, o sal, o querosene e a cumbuca e caminhou de volta. Quando reencontrou sua poça, tirou a roupa e se jogou na água. Estava feliz da vida: ‘De fome já não morro.’ Fez uma fogueira. Dessa vez deixou a mandioca assar mais tempo. Comeu metade. Continuava crua. Tomou suco de limão com água. Decidiu tirar o resto do dia de ‘folga’.

No quinto dia (5 de janeiro), tomou três cumbucas de água antes de partir, às 5h50, de novo para onde achara as mandiocas. Finalmente encontrou um curral de gado, e um caminho. Ouviu um mugido. Seguiu no rumo, até encontrar um camponês que gritava para a vaca: ‘Corina!’ Sem identificar-se, perguntou apenas onde era o povoado mais próximo. O camponês usava um boné azul, parecido aos dos guerrilheiros. Explicou-lhe como chegar a San Agustín.

O POVOADO

Depois de cerca de quatro horas, e de cruzar outro camponês de boné que lhe confirmou a rota, Araujo divisou um casario. Estremeceu. Caminhou pelo povoado, sobressaltado. Sabia que seu aspecto era pavoroso: as roupas rasgadas, um lenço antes branco, agora marrom, amarrado na testa. Parou numa casa onde se telefonava a 250 pesos (R$ 0,25) por minuto.

Explicou à moça no balcão que não tinha dinheiro, mas precisava fazer uma chamada muito importante, e prometeu pagar-lhe depois. Quando viu o número de seu irmão Gerardo, a moça disse que não seria possível: ‘Ah, aqui o telefone é da Comcel e não se pode comunicar com a Movistar.’ Araujo se desesperou. Decidiu arriscar tudo: ‘Aqui tem Exército?’, perguntou. ‘Dobrando a esquina’, respondeu uma outra moça.

 

Araujo saiu correndo. Dois infantes da Marinha passavam pela rua. Abraçou um deles: ‘Infante, sou Fernando Araujo, estava seqüestrado pelas Farc durante seis anos. Escapei domingo passado. Preciso que vocês me protejam, me ajudem.’ Duas horas depois, um helicóptero pousava no campo de futebol de San Agustín. Araujo estava salvo. 

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