Você já parou para dar uma espiada num bom atlas do Brasil, depois de adulto, livre do estresse dos exames de geografia?
Recentemente, folheei o melhor deles, o do IBGE, enquanto preparava uma reportagem a respeito das teses do professor José Eli da Veiga acerca do desenvolvimento rural. É uma experiência e tanto. Naquelas 260 páginas que mostram o País de todos os ângulos, a imensidão e a diversidade do Brasil começam a deixar de ser abstração ufanista, para sugerir à imaginação a concretude dos municípios, das vilas, dos cultivos, das pastagens, das fábricas e dos casarios que se estendem por uma vastidão sem fim.
As pesquisas desse professor de economia da USP e o livro que ele está lançando agora, uma coletânea de 60 artigos publicados no Estado, são isso: um convite para olhar para o Brasil real, que desafia conceitos simplistas e se impõe com sua fantástica riqueza de possibilidades.
O título do livro, Cidades Imaginárias, é uma denúncia contra um desses conceitos, a premissa falsa que baliza, cotidianamente, impressões, argumentos, teses e políticas públicas: a de que mais de 80% da população brasileira é urbana.
Numa cruzada quase solitária, José Eli da Veiga, secretário do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, tem demonstrado, em seus artigos e palestras, os efeitos distorcivos da conversão das sedes dos municípios e vilas em sinônimo de “cidades”, por um infeliz decreto da Era Vargas, que se mantém em vigor. E que o IBGE, por exemplo, é obrigado a obedecer.
À primeira vista, pode parecer uma inofensiva idiossincrasia semântica ou uma tecnicalidade. Não é. Quem quer que precise entender fenômenos sociais, econômicos e políticos, ou traçar estratégias, sejam elas comerciais, públicas ou militares, precisa saber quantos de nós levam uma vida e têm um trabalho de tipo urbano e de tipo rural, e quantos são “rurbanos”, já que essas fronteiras são cada vez mais turvas. E o que significa cada uma dessas coisas.
A abordagem de José Eli, ele próprio e seus pesquisadores empenhados em interessantes pesquisas de campo em todo o País, enriquece a discussão teórica com casos intrigantes de municípios e microrregiões, conjugados com um levantamento de dados exaustivo, num país em que o simples esforço de reunir informações estatísticas já é heróico.
Quer um exemplo? Feliz, cidade a 100 quilômetros de Porto Alegre, que faz jus ao nome com seu pleno emprego e sua posição de uma das primeiras colocadas no índice de desenvolvimento humano no Brasil. O fechamento das fábricas da Grendene e da Antártica no município não acabaram com essa felicidade. Muitos dos dispensados investiram suas indenizações nos hortifrutigranjeiros, centro dinâmico de Feliz. Na vizinha Alto Feliz, os ateliês de malharia e de costura de sapatos para as fábricas do Vale dos Sinos absorvem a mão-de-obra.
A chave do desenvolvimento dessa e de muitas outras regiões é a simbiose de atividades tipicamente rurais e urbanas. Com ela, há uma mescla virtuosa de qualidade de vida, custos mais baixos, complementaridade de atividades econômicas, demanda de mão-de-obra intensiva e de serviços, renda, arrecadação, etc.
Noutros casos, é a proatividade de uma prefeitura, em conseguir um ônibus para transportar as crianças para a escola ou qualquer outra facilidade que torna o município um centro de atração de moradores em busca de melhores condições de vida, ou fixa os que já estão lá, detendo ou invertendo o êxodo.
Saber dessas coisas é valioso quando se vai discutir como destinar recursos públicos, de quem e sobre o que cobrar tributos, e tantos outros instrumentos de política para não atrapalhar o que está dando certo espontaneamente e criar condições para que as coisas melhorem noutros lugares.
Para isso, no entanto, é preciso focar a visão nas especificidades de cada lugar e ver como elas se encaixam no conjunto. Essa tem sido a tarefa singular de José Eli, e o que esse livro mostra é quanto ela pode ser instigante. A propósito: ele calcula que o Brasil seja 57% “inequivocamente” urbano.