O lento e confuso despertar da Inglaterra

Leonardo Trevisan analisa o que deu certo e errado no modelo inglês de modernização

Parlamento inglês em Londres: Estado não podia mais servir de empresário em setores deficitários. O jornalista e pesquisador Leonardo Trevisan visitava a casa de um professor de Oxford para uma das muitas entrevistas que fez, durante seu pós-doutorado na Inglaterra. Reparou que a cadeira que o prestigiado scholar lhe oferecia para se sentar estava amarrada com um barbante. Reservou-se qualquer comentário sobre aquele fato e se sentou polidamente, para ouvir o professor. Encerrada a entrevista, o anfitrião tocou no assunto. “Ao longo do último século, temos sido exímios na arte de disfarçar nossa decadência”, sorriu o professor, apontando para a cadeira amarrada.

A noção do declínio é central na imagem que os ingleses fazem deles mesmos.

A inferioridade na comparação com seus vizinhos no continente é a sua faceta mais amarga. Na inauguração do Eurotunnel, em 1994, um dos dados mais melancólicos da cobertura da imprensa foi o seguinte: ao cruzar o Canal da Mancha para o lado inglês, os trens tinham de desacelerar, porque, se trafegassem na mesma velocidade que na França, a terra do TGV, as anciãs plataformas das estações inglesas sairiam voando.

Os ingleses têm reagido a esse destino trágico com notável disposição de mudança. No fim dos anos 70, despertaram de uma espécie de sono dogmático.

Acordaram com a constatação, tão amarga quanto tardia, de que havia algo de profundamente errado com seu sistema semi-socialista. Alemães e franceses – para não falar dos americanos – produziam mais e melhor e haviam assumido a dianteira da inovação, enquanto os ingleses se mantinham presos a ramos de atividades e processos de produção remanescentes de sua Revolução Industrial.

Foi um despertar lento e confuso. Os próprios conservadores, que venceram as eleições de 1979 sobre a plataforma da mudança, não tinham idéia do alcance e da radicalidade que ela assumiria. Algumas coisas, no entanto, os reformistas intuíram e se confirmaram como seu fio condutor, entre elas, que o Estado não podia mais servir de empresário em setores economicamente insustentáveis; que era preciso quebrar a espinha dorsal do sindicalismo, avesso a qualquer ruptura do status quo; que as relações de trabalho e o sistema de educação e de treinamento profissional precisavam ser revistos.

Dessas intuições, relativamente vagas, à execução de reformas que viraram do avesso as relações políticas, econômicas e sociais da Grã-Bretanha, seguiu-se uma década e meia de turbulento experimento, que Trevisan relata em seu novo livro, Educação e Trabalho – As Receitas Inglesas na Era da Instabilidade, recém-lançado pela Editora do Senac.

A pergunta que o livro se faz é se o modelo de modernização da Inglaterra, iniciado pela conservadora Margaret Thatcher, continuado por seu sucessor, John Major, e pelo “novo trabalhista” Tony Blair, e, como observa Trevisan, copiado por muita gente pelo mundo afora, é, de fato, eficaz para gerar maior produtividade e competitividade, as palavras-chave do mundo globalizado. A julgar pelos resultados, a resposta parece ser “sim”: nos últimos anos da década de 90, a Inglaterra foi uma exceção na Europa Ocidental, driblando a recessão e reduzindo o desemprego, com ganho real dos salários.

A questão é se isso ocorreu graças ou apesar das reformas. Embora a resposta mais cômoda seja a que atribui o êxito às reformas, Trevisan entra nos detalhes das mudanças introduzidas nas relações de trabalho e no sistema de ensino (incluída aí a formação de mão-de-obra) – os dois focos do seu estudo -, analisa o seu significado e mede seus resultados específicos e concretos, setor por setor.

A associação entre ensino e produtividade é mostrada por um cruzamento de dados bastante claro. Trevisan cita um estudo de 1978 – um ano antes de Thatcher assumir o governo – da Confederação da Indústria Britânica, segundo o qual 68% das indústrias do país tinham sua produção limitada pela ausência de trabalhadores qualificados.

Em 1982, o governo Thatcher apresentava seu primeiro programa amplo de reforma do ensino profissionalizante, introduzindo mudanças no treinamento dos professores e nos currículos e um sistema de avaliação dos alunos. O objetivo: mudar a orientação do ensino, do acadêmico para o prático. Os estágios nas empresas passaram a ter um papel central na formação profissional.

Duas décadas e várias iniciativas e aperfeiçoamentos depois, o déficit de mão-de-obra qualificada ainda é grande, para os padrões do mundo desenvolvido, mas bem menor que no passado recente: no ano 2000, levantamento da Confederação da Indústria indicava que 26% das empresas se ressentiam da falta dessa mão-de-obra.

Thatcher implantou uma visão darwinista dos setores produtivos na Inglaterra: aqueles que não se sustentassem sem proteção do Estado não tinham por que continuar existindo. Enfrentando greves de fome e todo tipo de resistência, a Dama de Ferro fechou as minas de carvão e deixou que segmentos inteiros da indústria morressem à míngua, ao mesmo tempo em que a economia inglesa revelava suas vocações na área de serviços. A fragmentação natural dos serviços ocupou o espaço deixado pelos segmentos concentrados dos minérios, das indústrias e das estatais.

A legislação trabalhista ganhou enorme flexibilidade. Muitos contratos passaram a ser por tempo determinado, pondo fim às pesadas indenizações em caso de demissão e reduzindo o custo da geração de postos de trabalho. O poder que os sindicatos detinham foi redistribuído para outras esferas de participação política, como as associações de consumidores, com forte influência sobre as agências que regulam os serviços públicos privatizados.

O seguro-desemprego, que estimulava a acomodação nessa condição, tornou-se mais difícil de obter e de conservar. Os beneficiários passaram a ter que provar que estavam buscando trabalho com freqüência, e o valor do seguro, depois de um período determinado, ficou reduzido ao nível da sobrevivência.

Visitas orientadas a empresas potencialmente contratantes e cursos de treinamento em funções que registram maior demanda no mercado de trabalho passaram a fazer parte das obrigações dos beneficiários, tornando a condição de desempregado muito mais difícil e incômoda.

Trevisan escrutina essas mudanças de forma detalhada e vai mostrando o que deu certo e o que teve de ser revisto. Sua ambição vai além da precisão teórica. No seu livro, formuladores de políticas, formadores de opinião, educadores, especialistas e todas as pessoas interessadas num processo de transformação que tem servido de modelo para reformas em todo o mundo, inclusive no Brasil, encontram elementos para formar uma idéia mais crítica, mais consciente e mais balizada da experiência inglesa.

Reparou que a cadeira que o prestigiado scholar lhe oferecia para se sentar estava amarrada com um barbante. Reservou-se qualquer comentário sobre aquele fato e se sentou polidamente, para ouvir o professor. Encerrada a entrevista, o anfitrião tocou no assunto. “Ao longo do último século, temos sido exímios na arte de disfarçar nossa decadência”, sorriu o professor, apontando para a cadeira amarrada.

A noção do declínio é central na imagem que os ingleses fazem deles mesmos.

A inferioridade na comparação com seus vizinhos no continente é a sua faceta mais amarga. Na inauguração do Eurotunnel, em 1994, um dos dados mais melancólicos da cobertura da imprensa foi o seguinte: ao cruzar o Canal da Mancha para o lado inglês, os trens tinham de desacelerar, porque, se trafegassem na mesma velocidade que na França, a terra do TGV, as anciãs plataformas das estações inglesas sairiam voando.

Os ingleses têm reagido a esse destino trágico com notável disposição de mudança. No fim dos anos 70, despertaram de uma espécie de sono dogmático.

Acordaram com a constatação, tão amarga quanto tardia, de que havia algo de profundamente errado com seu sistema semi-socialista. Alemães e franceses – para não falar dos americanos – produziam mais e melhor e haviam assumido a dianteira da inovação, enquanto os ingleses se mantinham presos a ramos de atividades e processos de produção remanescentes de sua Revolução Industrial.

Foi um despertar lento e confuso. Os próprios conservadores, que venceram as eleições de 1979 sobre a plataforma da mudança, não tinham idéia do alcance e da radicalidade que ela assumiria. Algumas coisas, no entanto, os reformistas intuíram e se confirmaram como seu fio condutor, entre elas, que o Estado não podia mais servir de empresário em setores economicamente insustentáveis; que era preciso quebrar a espinha dorsal do sindicalismo, avesso a qualquer ruptura do status quo; que as relações de trabalho e o sistema de educação e de treinamento profissional precisavam ser revistos.

Dessas intuições, relativamente vagas, à execução de reformas que viraram do avesso as relações políticas, econômicas e sociais da Grã-Bretanha, seguiu-se uma década e meia de turbulento experimento, que Trevisan relata em seu novo livro, Educação e Trabalho – As Receitas Inglesas na Era da Instabilidade, recém-lançado pela Editora do Senac.

A pergunta que o livro se faz é se o modelo de modernização da Inglaterra, iniciado pela conservadora Margaret Thatcher, continuado por seu sucessor, John Major, e pelo “novo trabalhista” Tony Blair, e, como observa Trevisan, copiado por muita gente pelo mundo afora, é, de fato, eficaz para gerar maior produtividade e competitividade, as palavras-chave do mundo globalizado. A julgar pelos resultados, a resposta parece ser “sim”: nos últimos anos da década de 90, a Inglaterra foi uma exceção na Europa Ocidental, driblando a recessão e reduzindo o desemprego, com ganho real dos salários.

A questão é se isso ocorreu graças ou apesar das reformas. Embora a resposta mais cômoda seja a que atribui o êxito às reformas, Trevisan entra nos detalhes das mudanças introduzidas nas relações de trabalho e no sistema de ensino (incluída aí a formação de mão-de-obra) – os dois focos do seu estudo -, analisa o seu significado e mede seus resultados específicos e concretos, setor por setor.

A associação entre ensino e produtividade é mostrada por um cruzamento de dados bastante claro. Trevisan cita um estudo de 1978 – um ano antes de Thatcher assumir o governo – da Confederação da Indústria Britânica, segundo o qual 68% das indústrias do país tinham sua produção limitada pela ausência de trabalhadores qualificados.

Em 1982, o governo Thatcher apresentava seu primeiro programa amplo de reforma do ensino profissionalizante, introduzindo mudanças no treinamento dos professores e nos currículos e um sistema de avaliação dos alunos. O objetivo: mudar a orientação do ensino, do acadêmico para o prático. Os estágios nas empresas passaram a ter um papel central na formação profissional.

Duas décadas e várias iniciativas e aperfeiçoamentos depois, o déficit de mão-de-obra qualificada ainda é grande, para os padrões do mundo desenvolvido, mas bem menor que no passado recente: no ano 2000, levantamento da Confederação da Indústria indicava que 26% das empresas se ressentiam da falta dessa mão-de-obra.

Thatcher implantou uma visão darwinista dos setores produtivos na Inglaterra: aqueles que não se sustentassem sem proteção do Estado não tinham por que continuar existindo. Enfrentando greves de fome e todo tipo de resistência, a Dama de Ferro fechou as minas de carvão e deixou que segmentos inteiros da indústria morressem à míngua, ao mesmo tempo em que a economia inglesa revelava suas vocações na área de serviços. A fragmentação natural dos serviços ocupou o espaço deixado pelos segmentos concentrados dos minérios, das indústrias e das estatais.

A legislação trabalhista ganhou enorme flexibilidade. Muitos contratos passaram a ser por tempo determinado, pondo fim às pesadas indenizações em caso de demissão e reduzindo o custo da geração de postos de trabalho. O poder que os sindicatos detinham foi redistribuído para outras esferas de participação política, como as associações de consumidores, com forte influência sobre as agências que regulam os serviços públicos privatizados.

O seguro-desemprego, que estimulava a acomodação nessa condição, tornou-se mais difícil de obter e de conservar. Os beneficiários passaram a ter que provar que estavam buscando trabalho com freqüência, e o valor do seguro, depois de um período determinado, ficou reduzido ao nível da sobrevivência.

Visitas orientadas a empresas potencialmente contratantes e cursos de treinamento em funções que registram maior demanda no mercado de trabalho passaram a fazer parte das obrigações dos beneficiários, tornando a condição de desempregado muito mais difícil e incômoda.

Trevisan escrutina essas mudanças de forma detalhada e vai mostrando o que deu certo e o que teve de ser revisto. Sua ambição vai além da precisão teórica. No seu livro, formuladores de políticas, formadores de opinião, educadores, especialistas e todas as pessoas interessadas num processo de transformação que tem servido de modelo para reformas em todo o mundo, inclusive no Brasil, encontram elementos para formar uma idéia mais crítica, mais consciente e mais balizada da experiência inglesa.

 

 

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