O apagão informativo de Kashgar

O ataque de dois homens contra 70 policiais militares, que deixou 16 mortos e outros 16 feridos

KASHGAR, China – Na segunda-feira em Kashgar foi a ação terrorista mais ousada e mais contundente da história recente da China. Mas algo ainda mais desconcertante se seguiu a ele: a reação da imprensa e dos moradores de Kashgar.

No início da noite de segunda-feira, ao desembarcar na cidade, já tinha tido a sensação de que algo estava invertido: era como se eu estivesse em Kashgar, e os moradores é que estivessem chegando de outro planeta incomunicável. Do motorista de táxi à funcionária do Hotel Yiquan, semidestruído pelo atentado, ninguém tinha conhecimento do acontecido.

Ontem fui conversar com o gerente de uma casa lotérica embaixo do hotel, também danificada pela explosão. “O fato ocorreu às 6h (hora usada pelos moradores de Kashgar, embora oficialmente só exista o fuso horário de Pequim, duas horas mais tarde). Eu não estava aqui”, esquivou-se o rapaz. “Não sabemos bem o que aconteceu, e não tenho nada a dizer sobre isso.” Perguntas mais “profundas” foram rechaçadas com impaciente polidez – como o que ele, como uigur (muçulmano de etnia túrquica), pensa sobre esses grupos terroristas que dizem representar suas aspirações de separação da China. Ao sair da casa lotérica, minha intérprete uigur, estudante de medicina e guia turística profissional, disse que não podia mais trabalhar comigo.

Além de não quererem falar do assunto com estranhos, os moradores de Kashgar realmente não sabem bem o que aconteceu. Alguns me disseram ter ficado sabendo do episódio na tarde de ontem – cerca de 30 horas depois. Assim como a maioria dos moradores de Xinjiang, que nunca saíram da província em sua vida, a informação simplesmente não circula na China. A TV local noticiou apenas que 16 policiais tinham sido mortos e outros 16 feridos, sem maiores detalhes. O Diário de Kashgar, o único da cidade de 390 mil habitantes (a Grande Kashgar tem mais de 3 milhões), deu a informação no rodapé da primeira página. Sua manchete de ontem foi sobre a doação de 5,98 milhões de iuanes (US$ 854 mil), por 70.555 filiados ao Partido Comunista, para as vítimas do terremoto ocorrido em maio na província de Sichuan. Detalhe: a doação mensal é compulsória, e muitos filiados se queixam de que ela reduziu suas rendas.

O Diário de Xinjiang, que circula em toda a Região Autônoma Uigur, nem sequer colocou o assunto na capa. A notícia foi dada numa pequena nota no rodapé da página 2. Era o mesmo texto publicado pelo Diário de Kashgar, sob o título “Policiais atingidos violentamente”: “Dois suspeitos atacaram com um veículo um grupo de patrulheiros da fronteira de Kashgar durante exercício matinal quando passavam pelo Hotel Yiquan. Havia explosivos no veículo. Dezesseis morreram e 16 ficaram feridos. Dois suspeitos foram presos. O caso está sob investigação.” Dificilmente algum jornal do mundo noticiou o atentado de forma tão sucinta quanto o diário editado na cidade em que ele ocorreu.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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