Crise do setor está ligada à mudança do caráter do emprego, avalia o professor Leôncio Martins Rodrigues, que acaba de lançar pela Edusp o livro ‘Destino do Sindicalismo’
Há um mês, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou, na presença de 500 frentistas agradecidos, um protocolo proibindo o uso de bombas self-service – dessas que existem por toda a Europa e os Estados Unidos – nos postos de gasolina do Brasil. Um detalhe que recebeu pouco destaque foi a validade da medida: um ano. Nada impede que, ao fim desse prazo, ela seja renovada. De qualquer forma, é curioso imaginar: por quanto tempo uma medida assim pode vigorar? E o que aconteceria se o princípio que a norteia fosse aplicado aos demais setores? Até que fase da história da humanidade escolheríamos retroceder? A invenção da roda, por volta de 3500 a.C., terá deixado quantos sumérios desempregados?
Na solenidade, o presidente disse que o governo não permitirá que o avanço tecnológico se volte contra o homem e que sua prioridade é gerar empregos. Não é só o presidente que pensa assim. O objetivo de gerar empregos é uma obsessão mundial. Embora unânime, será plausível? Isso soará cruel e até grosseiro, mas a cada dia que passa fica mais difícil fugir da angustiante constatação de que somos menos e menos necessários no mundo do trabalho que nós mesmos criamos. Nele, o homem jamais se tornará inteiramente prescindível. Mas, que homem? E sob que condições? O indivíduo necessário é e será aquele capaz de viver e produzir na sociedade da informação. À sua espera, trabalho; não necessariamente emprego.
Conforme a produção em série dá lugar à supervisão de máquinas crescentemente autônomas, conforme as grandes fábricas dão lugar aos pequenos módulos altamente produtivos e sofisticados, conforme a própria indústria cede espaço econômico ao serviço, a antiga “classe operária” é substituída por indivíduos e, com eles, novas relações de trabalho.
Tudo isso parece mais ou menos longínquo – e pouco mensurável. Índices de desemprego, mesmo por setores, dependem de variáveis macroeconômicas. E permitem abordagem apenas quantitativa de uma questão que é também da natureza da relação entre capital e trabalho, para usar a categoria marxista. Há, no entanto, uma instituição objetiva cujo destino está atrelado à abstrata noção das relações de trabalho e da qualidade dos contratos: o sindicalismo.
“O problema do sindicalismo está hoje ligado à diminuição e à mudança do caráter do emprego”, diz o professor Leôncio Martins Rodrigues, prestigiado estudioso do tema e autor de Destino do Sindicalismo, lançado na sexta-feira (Edusp, 335 págs., R$ 27,00). Não por acaso, “a meta sindical é preservar a todo custo o emprego, mas isto é impossível”, afirma o professor. “Historicamente, todas as vezes em que o sindicalismo foi contra o progresso tecnológico, perdeu.” Esse progresso pode até ser retardado, mas não por muito tempo – quem sabe, um ano?
Os sindicatos existem quando existem contratos empregatícios entre um número expressivo de trabalhadores, de um lado, e empresas, de outro. Pelo menos essa é a regra nos países desenvolvidos. No Brasil, os resquícios do corporativismo fascista de Getúlio Vargas engendram a excrescência dos sindicatos de trabalhadores quase sem trabalhadores filiados. A contribuição obrigatória e o monopólio os sustentam.
Mas isso não é típico nem deve ser eterno – embora o professor seja pessimista quanto às perspectivas de mudanças. “O governo e os sindicatos patronais estão mexendo só no que lhes interessa, que é a desregulamentação dos contratos, para as empresas poderem demitir com mais facilidade”, analisa. “No monopólio sindical, na contribuição obrigatória e na Justiça do Trabalho, não interessa a eles nem aos sindicatos dos trabalhadores mexer.” Todo ministro do Trabalho que entra, lembra o professor, promete mudar a estrutura, mas não cumpre.
Mesmo assim, o professor acha que, no Brasil e na Argentina, assim como nos países ocidentais desenvolvidos, objeto de sua pesquisa de quase três anos, o sindicalismo já entrou em declínio. Tomados em conjunto, os 12 países mais desenvolvidos da Europa Ocidental, mais os Estados Unidos e o Canadá, registraram diminuição no índice de sindicalização dos trabalhadores, de 37%, em 1975, para 28%, em 1988.
Queda de nove pontos porcentuais em quase uma década e meia pareceria pequena à primeira vista, mas não depois de considerar uma série de fatores. Em primeiro lugar, a tendência de queda é visivelmente consistente, na série histórica: 35% em 1980 e 30% em 1985. Além disso, trata-se dos países onde o sindicalismo é historicamente o mais sólido.
O conjunto dos países europeus inclui os quatro nórdicos, em que a taxa de sindicalização é tradicionalmente muito alta e o declínio é menos acentuado. Na Suécia, por exemplo, o índice de sindicalização na indústria chegou aos 100%, nos anos 70. Em países como os Estados Unidos, o declínio é muito mais forte do que na média. De um índice de 30% de sindicalização, em 1975, os americanos caíram para 18%, em 1988.
As causas apontadas no livro para o declínio do sindicalismo estão estreitamente relacionadas com a nova realidade das relações contratuais de trabalho: a diversificação de funções causada pelas mutações tecnológicas, que leva à fragmentação dos interesses dos trabalhadores, dificulta a unificação das demandas e diminui a coesão e a solidariedade; a dispersão dos trabalhadores em diversas unidades de produção, às vezes espalhadas até por países diferentes; a maior mobilidade do capital internacional; a redução da dimensão das unidades de fabricação, a terceirização e o aumento da produção em pequenas empresas, que dificultam a aglutinação dos trabalhadores de mesma categoria; a tendência a acordos por empresas e locais de fabricação; a flexibilização da produção e das normas que regiam as tarefas, hierarquias e carreiras dos empregados; a maior heterogeneidade da força de trabalho, em virtude do surgimento de novas profissões e da maior presença de mão-de-obra com interesses próprios, como a mulher (creches e proteção contra assédio sexual) e imigrantes (igualdade de oportunidades, contra o racismo, etc.).
Todos esses fenômenos representam deslocamentos nas relações entre contratados e contratantes. De maneira geral, o livro aponta processos de desenvolvimento que vão do coletivismo para o individualismo e de uma relação entre empregado e empregador que começou como a de inimigo, passou pela de adversário e caminha para a de parceiro.
No Brasil, tem havido experimentos dessa nova parceria. Justamente nos setores em que o sindicalismo é mais forte, como o metalúrgico, empregados e patrões têm convergido freqüentemente, em acordos de redução de jornada e de não reajuste salarial, por exemplo. Do lado dos trabalhadores, o fator de pressão para as concessões tem sido o desemprego.
Apesar das idiossincrasias do modelo sindical brasileiro, aqui também, o fim do emprego é o fim do sindicato – e o desemprego do próprio sindicalista, lembra bem o professor Leôncio. Novas formas de associação, como as cooperativas e as organizações não-governamentais, assumem o espaço deixado pelos sindicatos, assim como novas formas de contrato de trabalho substituem o emprego.
Aqui no Brasil, nas relações com as empresas, profissionais são convertidos em espécie de empresas individuais. O contrato, às vezes por tempo determinado, é firmado entre essas duas empresas, embora, em muitos casos, o contratado continue cumprindo horários e ordens como um empregado. Isso pode resultar em pura exploração e deterioração de condições de trabalho, com a perda do direito a férias, por exemplo; ou em ganho nas relações entre as duas partes, com formas mais maduras de estimular e pagar pela produção. Depende do poder de negociação de cada um.
Qual a conseqüência política de todo esse processo? Ao contrário do que se pensa, o professor Leôncio acha “discutível” que os sindicatos tenham, historicamente, contribuído para a melhoria das condições de vida da população em geral. “Cada vez que os sindicatos dos funcionários públicos têm uma vitória, é em detrimento dos trabalhadores da iniciativa privada, já que a produtividade do Estado não aumenta”, exemplifica.
Empresas privadas estão assumindo papéis antes desempenhados pelo Estado. E a diferença é grande. O Estado é dominado pelos políticos e esses são influenciados pelos sindicatos. Empresas são controladas por executivos, mas, também, em última análise, pelos consumidores, em razão da concorrência.
Ao lado do crescimento da importância do mercado, está o peso crescente dos valores democráticos. Mas é na qualidade de consumidor que o cidadão passa a ser ouvido. O Estado passa a ser visto como um produtor de políticas. E tratado, nesse sentido, como empresa.”É uma situação paradoxal e nova”, resume o professor.
E como fica o ideal da geração de empregos? O emprego, assim como o sindicalismo, não está em crise, mas em declínio. É a diferença entre um percalço temporário e uma decadência irreversível. Teremos de nos acostumar com isso. E, no Brasil, de abdicar do emprego, para pensar em trabalho. “O Estado deveria se preocupar em gerar trabalho”, diz o professor Leôncio, hoje na Universidade Estadual de Campinas, mas que assumiu, em 1981, o cargo de titular na Ciência Política da USP deixado pelo professor Fernando Henrique Cardoso, que não quis reassumi-lo, depois da anistia. “Desde que os portugueses aportaram aqui, somos uma sociedade burocrática, orientada para criar empregos.”
“Principalmente na época da inflação alta, foi possível criar emprego, fingindo que se estava criando trabalho”, recorda. “Agora, não dá mais para fazer isso.”