Economia de mercado avança pelo campo

Governo dá incentivos para tentar fixar o homem no interior e reverter queda na produção agrícola

TONGZHOU, China – A vida de Xu Zhihong mudou para melhor. No ano 2000, ela trabalhava numa fábrica de bombas d’água em Miywa, a 115 quilômetros de Pequim, quando soube que o governo estava arrendando terras no cinturão verde da capital. Ela e o irmão, Dajun, juntaram suas economias e se mudaram para Tongzhou, 35 quilômetros a leste de Pequim, onde arrendaram uma área de 70,6 hectares, por 20 anos.

O governo cobra 20 mil yuans (US$ 2.436) por ano pelo uso da terra, e os irmãos Xu faturam entre 50 mil e 60 mil yuans (US$ 6.090 a US$ 7.308). Com quatro empregados, eles cultivam mudas de 30 espécies de árvores e de flores, aplacando o solo árido com irrigação subterrânea. E as fornecem para a Prefeitura de Pequim, que conduz um ambicioso programa de reflorestamento, para combater a desertificação e atingir a meta de promover, em 2008, “a mais verde Olimpíada da História”.

“Estamos muito felizes”, diz Zhihong, sentada num banquinho, depois de servir chá de erva-doce e, com hospitalidade camponesa, ceder as poltronas da sala aos forasteiros – um repórter, um fotógrafo e um intérprete – que chegaram sem avisar e começaram a fazer perguntas. “Agora, vivemos a época dos investimentos. Temos grandes esperanças de que vai ser um período muito bom, e vamos ganhar muito dinheiro.”

Kong Xianwu tem mais motivos ainda para festejar. Como é nativo de Tongzhou, ele não só não tem de pagar arrendo pelos 13,3 hectares que ocupa, como recebeu 60 yuans (US$ 7,30) por cada mu (unidade de área equivalente a 0,06 hectare), a título de incentivo. Kong planta pêssegos, que feirantes de Pequim vêm comprar em seu sítio. Nos anos bons, ele fatura 100 mil yuans (pouco mais de US$ 12 mil); nos ruins, entre 70 mil e 80 mil (quase US$ 10 mil).

Antes de entrar no programa de incentivos do governo, Kong tinha uma renda cinco vezes menor, plantando cereais e entregando sua produção diretamente para o Estado. “Não tínhamos estímulo nenhum para produzir: se colhíamos 50 sacas num ano, gastávamos tudo para plantar e colher as mesmas 50 sacas no ano seguinte”, lembra o agricultor, de 48 anos, que assinou em 1998 contrato de 30 anos com o governo.

As experiências de Kong e dos irmãos Xu são parte do esforço do governo chinês de fixar o homem no campo e assegurar o abastecimento do país, embalado num crescimento de 9% ao ano que tem causado uma explosão de consumo e uma invasão das terras aráveis pelas cidades e indústrias. Para a safra 2004-2005, o governo anunciou subsídios de US$ 3,75 bilhões, na tentativa de reverter um declínio de cinco anos na produção agrícola.

Depois de varrer as áreas industriais do litoral, o experimento chinês com a economia de mercado vai avançando pelo interior do país, causando transformações abruptas na vida dos camponeses.

Em 1999, Yang Zengshun ficou sem emprego, quando a fábrica de adubos em que trabalhava, em Tongzhou, faliu – algo que jamais acontecia com as estatais na economia comunista. Faltando cinco anos para se aposentar, Zengshun, de 50 anos, não consegue emprego. É sua mulher, Xiupiang, também de 50 anos, quem sustenta a casa, ganhando 450 yuans (US$ 54,81) por mês na gleba dos irmãos Xu.

“As coisas aqui estão melhorando muito”, garante Li Huaxiu, também de 50 anos, colega de Xiupiang. “Agora, os comerciantes vêm aqui comprar as coisas.” Huaxiu se admira com o fato de que quem tem dinheiro pode até construir uma casa do jeito que quiser. Antes, todas as casas eram iguais, feitas pelo governo – como a de Huaxiu, que não tem condições de construir uma nova. “Quem vem aqui com dinheiro, pode fazer o que quer.”

Nem todos os agricultores chineses encontram trabalho no campo como os de Tongzhou, privilegiados pela proximidade do mercado de Pequim. Há pelo menos 100 milhões de imigrantes camponeses nas grandes cidades chinesas. Em 2020, outros 200 milhões terão saído do campo, em busca de trabalho na construção civil e nas fábricas, calcula Zhou Tianyong, vice-diretor do Departamento de Pesquisa Econômica da Escola do Comitê Central do Partido Comunista.

Diante da demanda crescente de mão-de-obra nas cidades, o governo central tem relaxado o controle antes rígido sobre as viagens internas, que requerem passe especial. Moradores das áreas rurais mais próximas dos centros urbanos têm recebido uma carteira de identidade para circular à vontade.

“Já tenho a minha carteira e posso ir para onde quiser”, orgulha-se um operário em Pequim, que se identifica apenas como Wang. Ele veio há três meses da Província de Jiangsu, na costa nordeste do país, onde cultivava frutas, alho e cebola. Trabalhando na construção de um prédio na Universidade de Pequim, Wang mora num barracão dentro da obra e ganha entre 700 e 800 yuans (menos de US$ 100) por mês. “Ganho mais aqui do que no campo”, diz Wang, de 46 anos, que deixou a família em Jiangsu. “Quando terminar aqui, vou procurar outro trabalho em Pequim.”

Os camponeses são recrutados por agências do governo ou construtoras de economia mista, e nem sempre recebem seus salários. Muitos deles se endividam com os patrões, que lhes cobram pelo alojamento, ferramentas e comida, e acabam vagando pelas grandes cidades, sem ter onde morar, procurando bicos.

Embora estejam surgindo grades nas janelas das casas, a criminalidade ainda é muito baixa nas cidades. Quem é encontrado com uma arma está sujeito à pena de morte.

Já a prostituição está se tornando corriqueira. Nos hotéis caros e nas avenidas elegantes, chineses com dinheiro e estrangeiros são abordados por moças que oferecem “anmo” – “massagem”, em mandarim, que se converteu num eufemismo para sexo pago.

Em frente ao café Lan Cui Fan, numa rua movimentada de bares e restaurantes de Pequim, um jovem chinês acompanhado de várias moças aborda em inglês os estrangeiros ao descerem do táxi: “Tenho muitas damas bonitas para massagem.”

A oferta é feita na vista de policiais, sentados numa delegacia envidraçada bem na frente do café. O preço de duas horas varia de 300 a 400 yuans (menos de US$ 50), dependendo da beleza das moças. Uma noite inteira custa 800 yuans (quase US$ 100).

Esse tipo de liberalidades, impensável há duas décadas, reflete a percepção do regime da necessidade de válvulas de escape para a crescente pressão social.

A estatística oficial de desemprego urbano é de 4,3%. Mas o índice não inclui, por exemplo, as dezenas de milhões de ex-empregados das estatais fechadas por ineficiência, que recebem minguados auxílios-desemprego. Estima-se que haja 200 milhões de desempregados no campo.

A entrada de todo edifício importante de Pequim é guardada por um casal de leões esculpidos em mármore branco. O da esquerda, o macho, pousa uma pata sobre uma esfera, que representa a unidade imperial. Enquanto a fêmea, da direita, brinca com um filhote, símbolo da fertilidade.

Do 1,3 bilhão de chineses, 900 milhões ainda vivem no campo, e os outros 400 milhões na cidade. Nos próximos anos, a estabilidade do Império do Centro, agora regido por uma ditadura de partido único, dependerá, em grande medida, da capacidade do governo de elevar o padrão de vida da grande massa de chineses no campo.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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