Com ou sem venda de urânio, desafio é financiar Angra 3

Por trás da confusão nuclear com chineses, está a urgência de concluir a usina

XANGAI – O enredo da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China parecia bastante previsível: parceria estratégica, atração de investimentos, aumento do comércio. De repente, um episódio que não estava no roteiro: uma mudança em dois pilares da política nuclear brasileira – a preservação das reservas de urânio para uso próprio e o segredo em torno da tecnologia de enriquecimento empregada em Resende (RJ) – parecia estar em marcha.

Foi o presidente Lula quem primeiro chamou a atenção para o assunto, em sua palestra sobre política externa na Universidade de Pequim, na manhã de terça-feira, quando citou, entre outros pontos de cooperação com a China, a “exploração do petróleo e das minas de urânio”.

Na tarde daquele mesmo dia, o ministro do Planejamento, Guido Mantega, confirmou a possível revisão da política nuclear, informando que o presidente havia determinado a criação de uma comissão para estudar o assunto. Finalmente, o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, forneceu os detalhes, falando do interesse chinês em comprar urânio e tecnologia brasileiras, e acrescentando que a possibilidade estava em aberto.

Estava criado o cenário para uma controvérsia de dimensões internacionais: o anúncio de fornecimento de urânio por um país que pode ter a segunda reserva do minério no mundo para uma potência nuclear governada por uma ditadura cujos propósitos são difíceis de perscrutar não acontece todos os dias.

Isso, num contexto em que o Brasil se tem recusado a permitir a inspeção total de sua centrífuga de Resende – em cuja tecnologia o mundo inteiro parece estar interessado, já que, segundo uma autoridade do governo na área, ela permite enriquecer urânio a um custo muito baixo, sendo “dez vezes mais eficiente que o esquema americano”. Diante da repercussão, Lula se recusou a comentar o assunto, em entrevista coletiva, na quarta-feira.

“Foi um erro ter falado em urânio”, reconhece o integrante do governo. “Essa palavra é explosiva. É como dizer ‘Bin Laden’.” O deslize pode ter sido impulsionado pela ansiedade de membros do governo em terminar a usina nuclear de Angra 3. Seu equipamento está encaixotado por falta de recursos para concluir o projeto, que demandaria mais US$ 1 bilhão. O dinheiro da venda do urânio e da tecnologia seria destinado a ela.

O interesse do governo brasileiro em dominar a tecnologia nuclear é estratégico, e não para iniciar novos empreendimentos na área, garante a fonte. Isso porque o potencial para a construção, no Brasil, de hidrelétricas e termoelétricas – que geram energia a um custo muito mais baixo – está longe de ser esgotado. O megawatt/hora das usinas de Angra sai na faixa dos R$ 90 a R$ 120. No Mercado Atacadista de Energia (MAE), o megawatt/hora bateu em R$ 670 na época do apagão, em 2001. Mas, com a entrada em funcionamento das termoelétricas, a volta das chuvas e a redução do consumo, ele chegou a R$ 6, e hoje é vendido por R$ 18.

O grande entrave para a expansão das hidrelétricas e termoelétricas no País é a dificuldade em obter licenças ambientais, continua o membro do governo. “Sete Quedas, hoje, não seria feita”, exemplifica. “Se você pede para fazer uma usina de 10, recebe autorização para fazer uma de 5”, diz ele. “Só que, depois que você fez uma usina de 5 naquele lugar, não pode ampliá-la mais.” O potencial hidrelétrico brasileiro vai sendo, assim, subaproveitado. “Quando a economia do País voltar a crescer, isso vai se tornar um problema”, conclui a fonte.

Se, para o Brasil, a geração de energia nuclear não é atraente no momento, para a China, ela é inescapável. Com seu crescimento econômico acelerado, que atingiu 9,1% no ano passado, aumenta dramaticamente a dependência chinesa de petróleo importado e do carvão mineral, que o país tem, mas que é altamente poluidor. A mescla de gases emitidos pelos automóveis e pelas usinas de carvão tem criado uma camada de poluição constante sobre Pequim, Xangai e outras grandes cidades chinesas, lembrando, às vezes, o fog londrino dos tempos da Revolução Industrial.

O fornecimento de urânio e a venda de tecnologia foram colocados na mesa de negociações, pelos chineses, como condição para o Brasil disputar os contratos de 11 novas usinas nucleares. A meta do governo chinês é ampliar de 8 para 40 gigawatts a capacidade de geração de energia nuclear até 2020. Cada reator tem o custo estimado em US$ 1,5 bilhão. Atualmente, a China dispõe de nove reatores e outros dois estão sendo construídos com tecnologia russa na província de Jiangsu, ao norte de Xangai.

Multinacionais do setor como a GE e a Westinghouse americanas, a Framatome francesa e a Candu canadense disputam os contratos. Um dos critérios das licitações, ao lado do menor preço, é a transferência de tecnologia para os chineses. Aí entra o know-how da centrífuga de Resende, desenvolvido pela Marinha do Brasil, e protegido até mesmo de inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica, apesar das pressões americanas.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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