Prerrogativa de recolher impostos sem prestar contas moldou o governo irresponsável.
Na ciência política, no pensamento econômico e no estudo sociológico do Brasil, há uma noção profundamente arraigada e amplamente difundida: a de que o subdesenvolvimento do País se deve a causas externas. O modo de inserção e o papel do Brasil na economia internacional teriam sido impostos pelas necessidades do sistema mundial, composto de um centro rico e excludente e de uma periferia vasta e empobrecida. Na visão preponderante, o atraso brasileiro seria resultado de imposição de fora — não de disposição íntima.
A Nação Mercantilista, novo livro de Jorge Caldeira, procura desfazer essa noção. Seu fio condutor é o sistema fiscal e tributário brasileiro. Seu divisor de águas institucional, a Constituição de 1824, que instaurou o Império do novo Brasil independente. Seu objeto político, a elite da época, composta dos grandes comerciantes e do alto funcionalismo público e representada na Corte e no Parlamento. Foi essa elite que decidiu pela continuidade da ordem econômica mercantilista do Brasil colônia.
O sistema mercantilista, que remonta ao Descobrimento do Brasil,
caracterizou-se pela inicial escassez de moeda e pela espoliação fiscal exacerbada da colônia pela metrópole, na familiar fórmula muito imposto/pouco serviço. Enquanto Inglaterra, França e Holanda montaram comércio triangular com suas colônias, com a circulação entre elas de escravos e mercadorias, o Brasil traficava diretamente os escravos da África. Com isso os lucros portugueses com a exploração da colônia eram menores. Daí a necessidade de Portugal de extrair mais ganhos com impostos que outras metrópoles.
A falta de liquidez monetária, conjugada com o excesso de impostos,
engendrou uma riqueza concentrada no patrimônio. Portugal proibia
empreendimentos no Brasil e inibia a criação de um sistema de garantias para os contratos firmados entre os grandes produtores e os grandes comerciantes.
Não existiam, no Brasil, garantias sequer para a cobrança das dívidas.
Crédito escasso e juros altos completam — até hoje — o quadro do atraso.
Essa era a face econômica do sistema político e social do antigo regime, para o qual a esfera privada era a da família e a esfera pública, a regida exclusivamente pelo governo. A rigor, não podia existir “iniciativa privada”. O problema da liquidez se resolveu no século 18, com a exploração do ouro. O mesmo não se pode dizer da dificuldade de tornar produtiva a fortuna.
A herança colonial e mercantilista poderia ter sido abandonada, no Brasil, pelo menos a partir da transferência de dom João VI para cá, em 1808, e sobretudo a partir da independência, em 1822.
Jorge Caldeira, autor de Mauá: Empresário do Império (1995), observa que algumas medidas nessa direção foram tomadas, “com um século e meio de atraso”, acompanhadas de fatores de desoneração e de crescimento econômico. O governo passou a facilitar a abertura de empresas; o próprio custo da administração diminuiu, com sua instalação aqui; o serviço público melhorou, “de péssimo para ruim”. A economia se aqueceu, com a mudança para cá da massa de funcionários bem pagos da Corte e a contratação de outros tantos aqui.
Esses fatores de progresso poderiam ou não ser potencializados na
Constituição de 1824, com um sistema institucional e fiscal compatível com o desenvolvimento capitalista. Foi aí, segundo a tese de Caldeira, que se perdeu a chance histórica: “Constitucionalizamos o mercantilismo no Império.” O imperador se consolidou no status de irresponsável do ponto de vista jurídico, com a responsabilidade de governo recaindo sobre o Parlamento. Estar acima da lei é, desde então, marca de prestígio, poder e autoridade.
O sistema fiscal e o tributário, da mesma maneira que a questão da
escravidão, não constaram da nova Constituição, deixados ao sabor das negociações entre liberais e conservadores. A prerrogativa de recolher impostos horizontalmente, sem prestar contas sobre os critérios da taxação nem sobre os gastos públicos, moldou o governo irresponsável. Perpetuou-se, nas palavras de Caldeira, “o arbítrio na taxação da renda nacional”. E continuou não havendo garantias constitucionais para os contratos.
Os impostos mantiveram a sua feição mercantilista, taxando a produção e isentando o patrimônio. (Uma curiosidade: Caldeira acha que o Brasil é o único país do mundo que ainda hoje conserva um tributo mercantilista clássico — as contribuições obrigatórias de patrões e empregados para suas respectivas entidades de classe.) A riqueza, conseqüentemente, continuou concentrada na esfera privada, no sentido do antigo regime: o âmbito da família.
Os lucros auferidos pelas empresas continuaram maciçamente canalizados para a riqueza pessoal de seus proprietários, em vez de se transformarem no capital que faz a economia crescer. Mesmo assim, e isso desde a época colonial, a economia brasileira sempre cresceu, enfatiza Caldeira, graças à vitalidade manifesta na periferia do sistema e no interior do território, onde o Fisco e outros agentes do Estado chegam com mais dificuldade.
“O sistema colonial não foi impeditivo à acumulação econômica, e sim o fator fiscal”, analisa Caldeira. Apesar do efeito recessivo dos entraves fiscais, a economia brasileira cresceu. Na virada do século 19, ainda sob o mercantilismo, o Brasil era mais rico que Portugal e EUA. Foi ultrapassado pelos EUA no decorrer do século passado, com a institucionalização do capitalismo, que o Brasil não fez.
É intrigante o momento da decisão, identificado por Caldeira, em que a elite do País optou por mantê-lo na velha rota do mercantilismo. Para o sociólogo, os grandes comerciantes e produtores brasileiros, desde o final do século 18, vislumbraram as perspectivas do capitalismo. Um indício foi a criação de companhias seguradoras.
Entretanto, no momento crucial da Constituição de 1824, na escolha entre continuar enriquecendo como já vinham e desbravar o novo território do capital e do risco, preferiram ficar com o que já tinham e conheciam. Foi assim que, no momento em que se tornava nação, o Brasil optou por seguir sendo mercantilista. “O Brasil não virou nação desenvolvida no século 19 porque esse não era o objetivo”, conclui Caldeira. Os obstáculos ao desenvolvimento foram, como são, institucionais — e erguidos por brasileiros.