Para o diplomata Renato Amorim, do novo Conselho Empresarial Brasil-China, a agenda pouco conflituosa colabora para o desenvolvimento de negócios entre os dois países
O Brasil representa para a China uma fonte segura de abastecimento nas próximas décadas, que prometem continuar sendo de forte crescimento econômico. Com o Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, por exemplo, a China não tem uma agenda conflituosa. Além disso, o Brasil é visto como líder regional e como porta de entrada para a América Latina, com ou sem a criação da Área de Livre Comércio das Américas.
A análise é do diplomata Renato Amorim, que está assumindo o cargo de secretário-executivo do novo Conselho Empresarial Brasil-China. Chefe da área econômica da embaixada do Brasil em Pequim entre 2000 e 2003, Amorim, de 34 anos, descarta medidas drásticas para conter o aquecimento econômico da China, bem como mudanças significativas no regime político.
Estado – O sr. acha que vem por aí algum pacote para desacelerar o crescimento econômico na China?
Renato Amorim – Não. Há uma tendência de que se aumentem ligeiramente os juros e o depósito compulsório dos bancos, de maneira a dificultar um pouco o crédito. E outras medidas que o governo chinês tome para dificultar investimentos em setores como construção civil, indústria de cimento, alumínio e aço.
Estado – De quanto é o depósito compulsório na China?
Amorim – Em agosto, subiu de 6% para 7% e em janeiro, para 7,5%.
Estado – Está bom (no Brasil, é de 23%)…
Amorim – Não é nada, não é? O impacto econômico desse tipo de medidas é muito pequeno. Quem está tomando empréstimo são grandes empresas e isso afeta muito pouco as decisões de investimento. Como a taxa de juros não é livremente negociada para empréstimos bancários, o efeito disso é muito pequeno. Na verdade, numa economia controlada como a da China, o efeito disso é muito mais político do que econômico. Funciona mais como um aviso para investidores, conglomerados: ‘Atenção. Colaborem conosco porque podemos fechar um pouco mais a torneira.’
Estado – Como a China reage às pressões dos Estados Unidos para valorizar o yuan?
Amorim – Em toda virada de ano há uma temporada de pressões sobre o yuan. É quando o governo americano começa a apresentar queixas do atrelamento cambial do yuan ao dólar. No ano passado, isso ganhou uma visibilidade muito grande, com o próprio Alan Greenspan (presidente do Banco Central americano) vindo a público para falar a respeito. O secretário do Tesouro, John Snow, esteve na China, com uma mensagem muito dura para os chineses. Mas tudo isso num contexto eleitoral. Em alguns setores, os americanos estão perdendo empregos para os chineses, porém são setores com deficiências estruturais há muito tempo. A China é competitiva, mas não é só por causa dela que setores politicamente sensíveis (nos EUA) estão em dificuldades. E para atender às exigências americanas, o yuan teria de passar por uma valorização muito intensa, que certamente causaria dificuldades profundas para a economia chinesa e prejudicaria o saldo comercial do país. O governo chinês já atendeu à exigência americana no ano passado, de maneira indireta. Entre agosto e outubro, eles começaram a rever a política pela qual os impostos pagos por um produto eram devolvidos no ato da exportação. Isso funcionava como um subsídio indireto às exportações. Com isso, o produto chinês já perde um pouco a competitividade frente ao americano.
Estado – A competitividade chinesa também é decorrente de salários baixos. Fala-se até de trabalho semiescravo em alguns setores, empregando presos, por exemplo. Isso ainda existe?
Amorim – Falar em trabalho escravo é exagerado. É evidente que num país que está crescendo tão depressa e tem um padrão de capitalismo selvagem comparável à Europa do século passado, há muitos abusos dos direitos dos trabalhadores, há as chamadas sweat shops (fábricas com longas jornadas e baixos salários). Mas isso está mudando muito rapidamente e salário não é o único fator que explica a competitividade chinesa. Por que não vão produzir na Índia, na Indonésia, no Laos? O Brasil também é relativamente barato em termos de dólar. O que há na China é uma preparação do país muito intensa. O governo investe pesadamente em infra-estrutura, em capacitação, etc. Por outro lado, há um fluxo muito grande de capital estrangeiro, tentando não apenas alavancar essa produção para explorar terceiros mercados, por causa da base produtiva barata na China, mas também fazendo uma aposta estratégica no mercado chinês, que tem um potencial gigantesco.
Estado – Com tantos problemas de disparidades regionais e novos contrastes entre classes sociais, como a China ainda encontra recursos para investir no exterior, em vez de canalizá-los integralmente para o desenvolvimento interno?
Amorim – Eles têm US$ 400 bilhões em reservas e há uma percepção no governo chinês de que, com as incertezas que há em torno do dólar, eles poderiam dar um destino mais rentável a uma parte desses recursos. Então, em outubro, foi criado um programa de estímulo ao investimento no exterior, à intenacionalização de grandes empresas chinesas. Não é qualquer empresa que tem acesso a isso. A idéia é de que algumas grandes empresas que deverão se tornar as grandes multinacionais chinesas, de maneira semelhante ao que aconteceu na Coréia nos anos 80, tenham acesso a esses recursos a um custo de capital muito baixo. Quanto às disparidades regionais, já há uma série de programas do governo, da ordem de mais de US$ 20 bilhões por ano, para o desenvolvimento do interior. Isso evidentemente não vai corrigir as disparidades regionais no curto prazo, não vai fazer com que as diferenças entre litoral e interior (que os chineses chamam de Oeste) desapareçam em poucos anos. Porém, eles começam a dar condições de infra-estrutura para sanar um pouco essas deficiências.
Estado – A China está sendo muito assediada pelo mundo inteiro. Qual o grau de interesse deles pelo Brasil? O que o Brasil significa para eles?
Amorim – Várias coisas. Os chineses têm uma visão estratégica e de longo prazo. Eles têm um desafio demográfico gigantesco, óbvio, e recursos naturais limitados. A terra arável na China é um pouco mais de 1 milhão de quilômetros quadrados, o que não é nada, são 11% do país. E está diminuindo por causa da especulação imobiliária e da expansão industrial. Eles têm deficiências na área de energia: falta petróleo, uma série de minérios. Nós temos um grande território arável, nossa agricultura é extremamente competitiva em vários segmentos, temos minerais, madeira, de que a China precisa também. Então, eles vêem o Brasil como fonte segura de abastecimento. Com uma vantagem importante: não temos uma agenda de geopolítica conflituosa com a China. Eles vêem o Brasil como líder regional e como uma porta de acesso muito vantajosa, seja para os Estados Unidos, se e quando sair a Alca, seja para a América Latina. Além do mais, esse padrão de investimento chinês para melhorar o fluxo estratégico de recursos naturais (modernização de portos e ferrovias) não é privilégio do Brasil. Eles estão prospectando minérios na África, buscando o petróleo do Oriente Médio, conectando redes de gás na Ásia Central, no Casaquistão, no sul da Sibéria… Eles olham para o futuro, para os horizontes de 2020, 2030, 2040 e dizem: ‘Vamos ter problemas de abastecimento e precisamos buscar fontes externas.’ Onde há fontes de alimentos? Na Europa, é muito caro. Com a expansão da União Européia, ela vai ter que rever a política de subsídios. Há os Estados Unidos, que são um grande silo, mas aí há um problema estratégico. A China vai colocar sua segurança estratégica nas mãos de um país com uma agenda conflituosa, não necessariamente hoje, mas como potencial de médio a longo prazo? As alternativas para a área alimentar mais viáveis são Brasil, Argentina, Canadá, Austrália e Sudeste Asiático, e a China está se movimentando em torno desses países. Ou seja, eles estão tentando resolver equações de longo prazo que não se fecham muito bem. Se a China quadruplicar daqui a 20 anos o seu PIB, vai ser um gigantesco absorvedor de tudo o que se imaginar em produtos naturais. O Brasil é um grande fornecedor de soja e carne, mas tem gargalos de infra-estrutura muito grandes, que podem prejudicar o fornecimento para a China. Então, investir em infra-estrutura é para eles um ganho duplo: seja na participação de investimentos no Brasil, seja ao assegurar a estabilidade do fluxo de matérias-primas para a China.
Estado – Do ponto de vista social e político, a China vai se manter estável nos próximos anos?
Amorim – A concentração de renda está aumentando e a China pode caminhar para a latinização, alcançando os níveis de desigualdade dos nossos países. Ela vive um processo de industrialização muito rápido e excludente, porque algumas classes são favorecidas de forma muito mais acelerada do que outras. Pode ser uma receita para a geração de tensões sociais. Mas isso desestabiliza um país? Para responder, só com bola de cristal.
Estado – Na política interna, não deve haver grandes mudanças nos próximos anos?
Amorim – É sempre bom pensar na China em blocos de cinco anos. É a duração dos planos qüinqüenais e também o mandato dado ao governo pelo Congresso do Partido Comunista. Estamos no meio de um desses períodos. Os novos líderes chineses que assumiram em março do ano passado estão fazendo um bom trabalho. Estão mantendo a linha econômica muito bem – talvez até bem demais, considerando o aquecimento espantoso da economia. O Partido Comunista é muito bem estruturado, com um governo forte. Acho que as chances de uma reversão, de mudança no modelo de governo, são mínimas. Falar em democratização da China é um pouco de ingenuidade.
Estado – Nem como aspiração de uma classe média emergente?
Amorim – Ao contrário. O enriquecimento acelerado empresta ao governo uma certa credibilidade perante a classe média. Nunca houve democracia na China. Qual seria o interesse de um membro da classe média em questionar um governo que o está fazendo mais rico? A médio prazo, não há a menor chance de uma mudança política na China.
Estado – No plano regional, há uma tensão entre China e Japão?
Amorim – Essa tensão tem muito de retórica. O Japão é um gigante econômico, porém um anão político. A China está se tornando um gigante econômico e já é um ator extremamente expressivo no cenário político. Nesses últimos dois anos, sobretudo no plano econômico, começa a se afirmar uma liderança de fato da China na Ásia Oriental.
Estado – Como o Japão lida com isso?
Amorim – Não sou especialista em Japão, mas é evidente que isso o incomoda. Por outro lado, os japoneses não acham ruim de ter acesso a produtos baratos na vizinhança.
Estado – E a um mercado com um padrão de consumo cada vez melhor…
Amorim – Cada vez mais os japoneses fazem incursões de consumo à China. Ou então há cadeias de varejo do Japão vendendo produtos da China. Essa invasão de produtos chineses, que tem contribuído para a queda dos preços e aumento da competitividade no Japão, não desagrada o consumidor japonês.
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